Ribeira Grande.

Romeiros Peregrinos da Misericórdia nesta Terra

 

Congratulo-me com esta jornada de reflexão, de meditação, oração e de aprofundamento da vossa condição de romeiros.

É muito acertada e actual a escolha dos dois documentos do Papa Francisco para servirem de fundamento para a vossa reflexão. Neste ano da misericórdia quisestes unir a Bula «O Rosto da Misericórdia» com a Enciclica «Laudato si» na qual o Papa nos oferece a melhor abordagem teológica acerca da criação a que ele chama a «Casa comum».

A minha reflexão convosco parte também destes dois textos e pretenderá situar-se mais na interpelação crente que deles emerge, porque tereis ocasião de uma abordagem noutros domínios com pessoas bem credenciadas para o fazerem.

 

1. Fixando os olhos na vossa notável riqueza humana e espiritual como Romeiros, lembro uma frase do Papa Francisco dita na prisão de Filadélfia no passado dia 27 de Setembro de 2015 que diz o seguinte: «viver supõe «”sujar-se os nossos pés” pelas estradas poeirentas da vida e da história». E, acrescenta que «todos precisamos de ser purificados, ser lavados».

Recordamo-nos de uma outra frase que ficou célebre da sua Exortação Apostólica «A Alegria do Evangelho» onde sublinha «prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, que uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças»; e noutra passagem diz que «a intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão “reveste essencialmente a forma de comunhão missionária”». Assim, «fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo» (EG, 23).

Segundo as palavras do Papa, «a Igreja “em saída” é a comunidade de discípulos missionários que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam» (EG, 24).

Focando a grandeza do Evangelho e a experiência da misericórdia de Deus, a pessoa do evangelizador consciente das suas limitações, «sabe que ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada» (EG, 45).

Deste modo, vós romeiros, caminhantes de penitência e de fraternidade, sois sinal do que é verdadeiramente a grande caminhada da vida de toda a criatura.

Nos caminhos da vida e da história deparamos com muitas coisas boas mas também somos assaltados por muitos factos e circunstâncias que nos sujam a necessitar de purificação e de renovação.

Não caminhamos sozinhos mas em conjunto com todos os homens, irmanados nos mesmos sonhos e participantes da mesma sorte. A caminhada obriga-nos e incentiva-nos a darmos as mãos e a partilhar das razões da nossa esperança.

 

2. Fazeis a experiência da vida na beleza e na miséria que ela comporta, de mãos dadas aos irmãos no sonho da edificação de uma fraternidade que deve abranger a todos.

Neste sentido, o Papa Francisco na Discurso na Assembleia das Nações Unidas, em Setembro passado, afirma que «a casa comum de todos os homens deve continuar a erguer-se sobre uma recta compreensão da fraternidade universal e sobre o respeito pela sacralidade de cada vida humana, de cada homem e de cada mulher; dos pobres, dos idosos, das crianças, dos doentes, dos nascituros, dos desempregados, dos abandonados, daqueles que são vistos como descartáveis porque considerados meramente como números desta ou daquela estatística».

Adianta ainda que «a casa comum de todos os homens deve edificar-se também sobre a compreensão duma certa sacralidade da natureza criada».

Assim na caminhada da vida, na sua compreensão e respeito, exige-se um grande grau de sabedoria, «que aceite a transcendência, própria de cada um, renuncie à construção duma elite omnipotente e entenda que o sentido pleno da vida individual e colectiva está no serviço desinteressado aos outros e no uso prudente e respeitoso da criação para o bem comum. Repetindo palavras de Paulo VI, «o edifício da civilização moderna deve construir-se sobre princípios espirituais, os únicos capazes não apenas de o sustentar, mas também de o iluminar e de o animar».

 

3. Somos Peregrinos da misericórdia. Todos e cada um têm necessidade de fazer a experiência da misericórdia e de oferecer gestos de misericórdia. Por isso, diz-nos o Santo Padre na Bula «O Rosto da Misericórdia» que precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. Isto porquê? Porque é fonte de alegria, serenidade e paz. Mais ainda é condição da nossa salvação.

Deste modo reconhecemos que «Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o acto último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado».

Em Jesus Cristo contemplamos o amor misericordioso vivido e oferecido pela Trindade divina. Por isso, adverte o referido texto, «com o olhar fixo em Jesus e no seu rosto misericordioso, podemos individuar o amor da Santíssima Trindade. A missão, que Jesus recebeu do Pai, foi a de revelar o mistério do amor divino na sua plenitude. « Deus é amor » (1 Jo 4, 8.16): afirma-o, pela primeira e única vez em toda a Escritura, o evangelista João».

Como nos refere o Papa Francisco, ao longo da história este amor tornou-se visível e palpável em toda a vida de Jesus. A sua pessoa não é senão amor, um amor que se dá gratuitamente. O seu relacionamento com as pessoas, que se abeiram d’Ele, manifesta algo de único e irrepetível. Os sinais que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Em súmula, tudo n’Ele fala de misericórdia. Podemos afirmar sem reserva de qualquer dúvida, n’Ele nada há que seja desprovido de compaixão.

 

4. Mas percorrendo a Sagrada Escritura, deparamo-nos com esta realidade que nos afirma que a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para connosco. Ele não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna-o visível e palpável. Aliás, como bem realça o texto da referida Bula, o amor nunca poderia ser uma palavra abstracta. Por sua própria natureza, é vida concreta: intenções, atitudes, comportamentos que se verificam na actividade de todos os dias. A misericórdia de Deus é a sua responsabilidade por nós.

Daí, já que Ele sente-Se responsável, isto é, deseja o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos, sublinha o Papa Francisco, em sintonia com isto, se deve orientar o amor misericordioso dos cristãos.

Realmente, tal como ama o Pai, assim também amam os filhos; tal como Ele é misericordioso, assim somos chamados também nós a ser misericordiosos uns para com os outros.

 

5. A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Esta frase que é a autêntica identificação dos fundamentos da Igreja conduz ao reconhecimento de que «toda a sua acção pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia». Mais ainda, como afirma o Papa Francisco, «a credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo». A Igreja «vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia». Talvez, demasiado tempo, sublinha o texto da citada Bula, «nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da misericórdia».

Mas, se «por um lado, a tentação de pretender sempre e só a justiça fez esquecer que esta é apenas o primeiro passo, necessário e indispensável, mas a Igreja precisa de ir mais além a fim de alcançar uma meta mais alta e significativa. Por outro lado, é triste ver como a experiência do perdão na nossa cultura vai rareando cada vez mais».

É lamentavelmente notório que, «em certos momentos, até a própria palavra parece desaparecer». Todavia, continua o referido texto, «sem o testemunho do perdão, resta apenas uma vida infecunda e estéril, como se se vivesse num deserto desolador».

Por isso, adverte o Papa, «chegou de novo, para a Igreja, o tempo de assumir o anúncio jubiloso do perdão. É o tempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos. O perdão é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o futuro com esperança».

 

6. Evangelizar é anunciar a misericórdia de Deus revelada em Jesus Cristo.

Para tal, «a Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, alma pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa».

Eis uma das exigências mais fundamentais da nova evangelização. Di-lo o Papa Francisco afirmando que «a Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém».

Reconhece-se que «no nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma acção pastoral renovada». Mais ainda, «é determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia». Por isso, «a sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia».

Como se afirma no texto da referida Bula, «a primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo». E, deste amor que não pode ser menos que ir ao perdão e ao dom de si mesmo, a Igreja faz-se serva e mediadora junto dos homens. Por isso, «onde a Igreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai». Implica-nos concretamente na misericórdia ao dizer que «nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia».

 

Como o tema da nossa reflexão diz, somos romeiros da misericórdia nesta terra.

Vamos, então, seguidamente interligar o compromisso da misericórdia com a teologia da criação, recorrendo alguns parágrafos inspiradores da Enciclica «Laudato si».

 

7. Todo o universo é linguagem de Deus. Nele, Deus exprime o Seu carinho pelas suas criaturas. Assim, «a história da própria amizade com Deus desenrola-se sempre num espaço geográfico que se torna um sinal muito pessoal, e cada um de nós guarda na memória lugares cuja lembrança nos faz muito bem». Sabe-o bem «quem cresceu no meio de montes, quem na infância se sentava junto do riacho a beber, ou quem jogava numa praça do seu bairro, quando volta a esses lugares sente-se chamado a recuperar a sua própria identidade» (Ls, 84).

Realmente, o homem ao ser imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer que cada criatura tem uma função e nenhuma é supérflua.

Deus escreveu um livro estupendo, «cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presentes no universo». Deste modo a contemplação da criação permite-nos descobrir qualquer ensinamento que Deus nos quer transmitir através de cada coisa, porque, «para o crente, contemplar a criação significa também escutar uma mensagem, ouvir uma voz paradoxal e silenciosa». Podemos afirmar que, «ao lado da revelação propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina no despontar do sol e no cair da noite».

Assim, «prestando atenção a esta manifestação, o ser humano aprende a reconhecer-se a si mesmo na relação com as outras criaturas: «Eu expresso-me exprimindo o mundo; exploro a minha sacralidade decifrando a do mundo» (cfr. Ls, 85)

Deste modo, compreende-se melhor a importância e o significado de qualquer criatura, se a contemplarmos no conjunto do plano de Deus. Tal é o ensinamento do Catecismo: «A interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal: o espectáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente no serviço umas das outras».

 

8. Romeiro da ternura e da compaixão.

Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. Adverte o Santo Padre, que «é evidente a incoerência de quem luta contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser humano de que não gosta» (LS, 91).

Isto compromete o sentido da luta pelo meio ambiente. Não é por acaso que São Francisco, no cântico onde louva a Deus pelas criaturas, acrescenta o seguinte: «Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor». Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade (Cfr. LS, 91).

 

9. Urge edificar uma ecologia integral no respeito pelo bem comum

A ecologia integral é inseparável da noção de bem comum, princípio este que desempenha um papel central e unificador na ética social. É «o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição».

Segundo o texto da Encíclica a que nos referimos, o bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral. Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a família enquanto célula basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz social, isto é, a estabilidade e a segurança de uma certa ordem, que não se realiza sem uma atenção particular à justiça distributiva, cuja violação gera sempre violência. Toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de defender e promover o bem comum (cfr. Ls, 156 – 157).

Somos romeiros, peregrinos e fazemos a experiência segundo a qual «sempre é possível desenvolver uma nova capacidade de sair de si mesmo rumo ao outro». Porque, «sem tal capacidade, não se reconhece às outras criaturas o seu valor, não se sente interesse em cuidar de algo para os outros, não se consegue impor limites para evitar o sofrimento ou a degradação do que nos rodeia».

Para tal, «a atitude basilar de se auto-transcender, rompendo com a consciência isolada e a auto-referencialidade, é a raiz que possibilita todo o cuidado dos outros e do meio ambiente; e faz brotar a reacção moral de ter em conta o impacto que possa provocar cada acção e decisão pessoal fora de si mesmo». Sem dúvida alguma «quando somos capazes de superar o individualismo, pode-se realmente desenvolver um estilo de vida alternativo e torna-se possível uma mudança relevante na sociedade» LS, 208).

 

10. O Romeiro, peregrino do mundo e com os olhos voltados para Deus vive do essencial.

É da sua experiência e dela oferece o testemunho que a sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Como diz o referido texto «não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas».

Porque deste modo conseguem reduzir o número das necessidades insatisfeitas e diminuem o cansaço e a ansiedade, então, é possível necessitar de pouco e viver muito, sobretudo quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos próprios carismas, na música e na arte, no contacto com a natureza, na oração. Na verdade, a felicidade exige saber limitar algumas necessidades que nos entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as múltiplas possibilidades que a vida oferece (cfr. LS, 223).

 

Conclusão: Deus compromete-se com a nossa história e com a nossa terra, convida à misericórdia e à compaixão segundo Seu coração e chama à responsabilidade de uns pelos outros.

Na experiência dos romeiros estes traços divinos e estes desafios tão humanos e necessários para a nossa cultura de hoje estão presentes.

Como diz o texto da referida Encíclica, «é necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos».

Reconhece que «vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu». Como tal, «uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses, provoca o despertar de novas formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento duma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente» (LS, 229).

Romeiros da misericórdia nesta terra vamos construir uma nova sociedade, edificar uma nova cultura mais dignas do ser humano e vamos comprometer-nos na Igreja como testemunhas autênticas do Evangelho da Alegria.

Verdadeiramente temos uma missão nesta terra.

 

+João Lavrador

Bispo Coadjutor de Angra e Ilhas