Angra. [PDF]

Hoje parece arcaica e ultrapassada a prece dos nossos antepassados, que em parte explica o desenvolvimento do culto a São Sebastião nos Açores, que Deus nos livre da fome, da peste e da guerra. Pese embora o uso avançado da razão cheia de luzes e o crescimento sempre ascendente da civilização, eis-nos a braços com o aumento da fome no mundo, pelo efeito das alterações climáticas, das deslocações de refugiados, da pandemia e do desemprego; a peste da década a que demos nome de Covid 19, com um considerável número de mortes, doentes e de sequelas na saúde, sobretudo na saúde mental; e  a guerra quer aos retalhos, quer como uma ameaça global às portas da Europa,  a que as Lajes daria passagem, insinuando que havemos de nos envolver no jogo dos poderosos e dos seus ocultos interesses.

Diante deste quadro e do espírito das bem-aventuranças, continuamos a trabalhar contra a fome, a peste e a guerra, com a não violência as ferramentas da Palavra de Deus e do nosso empenho: «Estejam preparados. Usem a verdade como um cinto bem apertado e a justiça como armadura. Que a prontidão em anunciar o evangelho da paz seja como o calçado para os vossos pés. Andem sempre armados com o escudo da fé. Que a salvação vos sirva de capacete e combatam com a espada do Espírito, que é a palavra de Deus, (Ef, 6, 14-17); «enquanto temos tempo, devemos praticar o bem para com todos» (Gál 6,10).

No magistério atual da Igreja, o Papa Francisco recorda-nos que «a tarefa educativa, o desenvolvimento de hábitos solidários, a capacidade de pensar a vida humana de forma mais integral, a profundidade espiritual são realidades necessárias para dar qualidade às relações humanas, de tal modo que seja a própria sociedade a reagir face às próprias injustiças, às aberrações, aos abusos dos poderes económicos, tecnológicos, políticos e mediáticos». (FT, 67).

Aproveitemos então a quaresma, como um tempo favorável, tempo de salvação e de graça, que não sabemos se volta a passar diante de nós, para uma oração mais intensa, uma caridade mais diligente e uma determinação firme na luta contra o mal, que começa em primeira pessoa e de dentro para fora.

Em vez da fome, da peste e da guerra, tomemos como caminho alternativo, livre, racional e moderno, o jejum, a esmola e a oração, que se completam mutuamente em ordem à caridade e à misericórdia.

O jejum é a forma de penitência que se concretiza na privação de alimentos e bebidas, bem como de vícios e dependências.  A abstinência consiste na escolha de uma alimentação simples e pobre, renunciando ao esbanjamento e ao desperdício.

Um modo de penitência é através da renúncia quaresmal, que consiste no dinheiro que cada católico junta durante a quaresma, como fruto das renúncias diárias que vai fazendo, em espírito de oração e conversão. Não se trata de um pagamento, de uma esmola, de um peditório ou de uma campanha de recolha de fundos; é o resultado do jejum que se faz, do que se iria gastar em coisas não necessárias, da austeridade que pauta a caminhada espiritual de cada sujeito.

A renúncia quaresmal de 2021, a favor do Serviço Diocesano da Pastoral da Saúde e da Caritas, serviu para aquisição de um ventilador ou suporte de vida para uma unidade de Saúde da Região e para acudir às solicitações mais prementes decorrentes dos efeitos indiretos da pandemia nos Açores, tendo rendido o total de 16.007,81 €. Obrigado em nome de todos os beneficiários.

Decidimos entregar o resultado das nossas renúncias quaresmais deste ano, entre a quarta feira de cinzas e a quinta feira santa (de 2 de março a 14 de abril), a São Tomé e Príncipe, como socorro a uma situação de pobreza agravada pela pandemia, dado o forte apelo do bispo desta diocese lusófona, insular e irmã.

Como marcas deste percurso, não omitamos o sinal das cinzas, que nos lembra sermos terra e filhos: «arrependei-vos e acreditai no evangelho»; o sinal da via-sacra, o sinal do lausperene ou das «24 Horas para o Senhor», o sinal da Caritas, o sinal dos sacramentos da cura: o da reconciliação para os pecadores e o da unção dos enfermos para os doentes e debilitados, até podermos chegar à celebração dos sinais sacramentais do Batismo e da Eucaristia, como viático dos peregrinos. Ficam por realizar este ano dois sinais expressivos: as procissões penitenciais e as romarias quaresmais, que se crê estas terem surgido há 500 anos, aquando da destruição vulcânica de Vila Franca do Campo em 1522.

Pelo caminho, da encarnação e da cruz, celebremos a Páscoa do Ressuscitado, d’Aquele que nos dá o Espírito Santo, que entre nós é materializado em pão, carne e vinho, tal sinal da paz, alegria e abundância, anunciando a globalização dos novos céus e da nova terra, que já intuímos e avistamos ao longe.

 

Angra do Heroísmo, 18 de fevereiro de 2022

 

Hélder, Administrador Diocesano de Angra e Ilhas dos Açores