Sobre Teologia da criação.

As primeiras palavras são de saudação a todos os presentes e de apresentar o meu reconhecimento pela vossa compreensão pelo adiar da data prevista para estas jornadas. Todos sabemos a razão que paralisou muitas das nossas actividades.

Saúdo igualmente o Senhor Director do Secretariado nacional da Pastoral da Cultura e felicito-o pela escolha do tema que vai ocupar a reflexão, tão importante e actual.

Saúdo cada um dos intervenientes e conferencistas que nos vão ajudar com o seu saber.

Estamos perante um tema crucial para a vida da natureza, da criação, da pessoa humana, da sociedade, com implicações na economia, na saúde, no bem estar, na coesão social e em tantos outros aspectos que implicam com a vida da pessoa humana.

Não se trata tão só do presente, mas sobretudo o futuro do planeta e do ser humano. Porém, não se constrói um futuro consistente sem investigar em profundidade os fundamentos da realidade que nos ocupa.

É aqui que entra a teologia da criação, cujo compêndio está bem delineado na publicação da «Laudato Si» do Papa Francisco.

Contudo, exige-se um breve percurso histórico sobre a abordagem que a Igreja tem feito sobre a realidade da criação. Naturalmente que ela está sempre presente na reflexão teológica dado que o primeiro livro da Biblia nos coloca na presença de tal desafio. No entanto vou resumir este itinerário ao Concilio Ecuménico Vaticano II e pos – concilio.

 

  1. Doutrina Conciliar do Vaticano II

 

Aparentemente, a teologia da criação não é tratada na aula conciliar. Digo aparentemente, porque na Gaudium et Spes, ela está muito presente. Logo ao inicio este documento convida-nos a reconhecer as fortes interpelações que se colocam através do progresso, quando afirma que «nos nossos dias, a humanidade, cheia de admiração ante as próprias descobertas e poder, debate, porém, muitas vezes, com angústia, as questões relativas à evolução actual do mundo, ao lugar e missão do homem no universo, ao significado do seu esforço individual e colectivo, enfim, ao último destino das criaturas e do homem» (GS. 3).

Realmente a questão que se nos coloca é o lugar do homem no universo e o último destino das criaturas e do homem. Eis a questão sobre o sentido da realidade criada.

Perante a complexidade do mundo de hoje, o Concilio sublinha que «marcados por circunstâncias tão complexas, muitos dos nossos contemporâneos são incapazes de discernir os valores verdadeiramente permanentes e de os harmonizar com os novamente descobertos» (GS.4). E, acrescenta-se «daí que, agitados entre a esperança e a angústia, sentem-se oprimidos pela inquietação, quando se interrogam acerca da evolução actual dos acontecimentos» (GS. 4). Na verdade, «esta desafia o homem, força-o até a uma resposta» (GS. 4).

De facto, refere ainda o Concilio, «a actual perturbação dos espíritos e a mudança das condições de vida, estão ligadas a uma transformação mais ampla, a qual tende a dar o predomínio, na formação do espírito, às ciências matemáticas e naturais, e, no plano da acção, às técnicas, fruto dessas ciências» (GS.5). Aliás, «esta mentalidade científica modela a cultura e os modos de pensar duma maneira diferente do que no passado» (GS. 5).  De facto, «a técnica progrediu tanto que transforma a face da terra e tenta já dominar o espaço» (GS. 5).

Por fim, realça-se que «entretanto, vai crescendo a convicção de que o género humano não só pode e deve aumentar cada vez mais o seu domínio sobre as coisas criadas, mas também lhe compete estabelecer uma ordem política, social e económica, que o sirva cada vez melhor e ajude indivíduos e grupos a afirmarem e desenvolverem a própria dignidade» (GS.9).

Na verdade, «tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo: neste ponto existe um acordo quase geral entre crentes e não-crentes» (GS. 12).

Sem me querer alongar mais, estamos perante algumas afirmações conciliares que nos dão o contexto para situarmos a posterior reflexão.

 

  1. Magistério de S. Paulo VI

 

Também o Magistério de S. Paulo VI, tão rico e eloquente, não se debruçou especificamente sobre a teologia da criação.

Contudo, a preocupação pela ecologia está presente no texto da Carta Apostólica «Octogesima Adveniens», onde se refere que «por motivo da exploração inconsiderada da natureza, começa a correr o risco de destruí-la e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação» (AO, 21).  Reconhece-se, aliás, que «não só já o ambiente material se torna uma ameaça permanente, poluições e lixo, novas doenças, poder destruidor absoluto; é mesmo o quadro humano que o homem não consegue dominar, criando assim, para o dia de amanhã, um ambiente global, que poderá tornar-se-lhe insuportável» (AO, 21).

De facto estamos perante um «problema social de envergadura, este, que diz respeito à inteira família humana» (AO, 21).

Mas, é sobretudo ao referir-se ao progresso que abre linhas de reflexão as quais questionam a necessidade de uma concepção teológica da criação para bem responder ao ser humano na sua dignidade.

Assim, na Sua Encíclica «Populorum Progressio», partindo do facto de que «o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico» PP. 14); sublinha que «para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo» (PP. 14).

Já perante o desenvolvimento diz-se que se a sua procura «pede um número cada vez maior de técnicos, exige cada vez mais sábios, capazes de reflexão profunda, em busca de humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo, assumindo os valores superiores do amor, da amizade, da oração e da contemplação» (PP. 20).

Verdadeiramente para uma reflexão séria sobre a criação exige-se sabedoria para que se promova um novo humanismo.

Paulo VI apela ao humanismo total que segundo ele, «não há, portanto, verdadeiro humanismo, senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exacta do que é a vida humana» (PP. 42).

Mais ainda, «o desenvolvimento integral do homem não pode realizar-se sem o desenvolvimento solidário da humanidade» (PP. 43)

Sem esta abertura para o Absoluto, o humanismo não só é limitado como se volta contra o ser humano e para ser integral não pode deixar ninguém de fora.

 

  1. Magistério de S. João Paulo II

 

Em S. João Paulo II, a questão da verdadeira reflexão acerca da criação já está presente. Lembro apenas as suas encíclicas Laborem Exercens» (1981), «Sollicitudo Rei Socialis» (1987) e «Centesimus Annus» (1991).

Ligando o consumismo com a crise ecológica, afirma que há um erro antropológico quando «o homem, que descobre a sua capacidade de transformar e, de certo modo, criar o mundo com o próprio trabalho, esquece que este se desenrola sempre sobre a base da doação originária das coisas por parte de Deus» (CA. 37).

Aliás, «pensa que pode dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair» (CA. 37). De facto, ««em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele» (CA. 37).

Refere que com este comportamento o ser humano se manifesta na sua pobreza e mesquinhez, mais no desejo de possuir do que alcançar a verdade sobre a criação.

Apela então para a defesa das condições de vida do ser humano, dizendo que se deve «salvaguardar as condições morais de uma autêntica “ecologia humana”» (CA. 38). Aliás, «não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral, de que foi dotado» (CA. 38).

Esta noção de ecologia humana marcará presença na reflexão posterior no Magistério dos últimos Papas.

No ano de 1990, a Mensagem para o Dia Mundial da Paz é dedicada à questão da criação. O titulo dá conta das preocupações do Papa ao referir «Paz com deus Criador; Paz com toda a Criação».

Começa por afirmar que «perante a difusa degradação do ambiente, a humanidade já se vai dando conta de que não se pode continuar a usar os bens da terra como no passado» (nº 1). Aliás, «a opinião pública e os responsáveis políticos estão preocupados com isso; e os estudiosos das mais diversas disciplinas debruçam-se sobre as causas do que sucede» (nº 1). Na verdade, «está assim a formar-se uma consciência ecológica, que não deve ser reprimida, mas antes favorecida, de maneira que se desenvolva e vá amadurecendo até encontrar expressão adequada em programas e iniciativas concretas» (nº 1).

Perante a complexidade do problema ecológico, o Papa apela para «alguns princípios basilares que, com o respeito da autonomia legítima e da competência específica de quantos estão empenhados em buscar-lhe uma solução, podem orientar a pesquisa no sentido de soluções adequadas e duradouras» (nº 7). Deste modo, «trata-se de uma série de princípios essenciais para construir uma sociedade pacífica, a qual não poderá ignorar nem o respeito pela vida, nem o sentido da integridade da criação» (nº 7).

Realça ainda a necessidade de uma nova solidariedade entre países; educar para a responsabilidade ecológica; promover o equilíbrio ecológico, enfrentando  directamente as formas estruturais de pobreza existentes no mundo; e sendo uma responsabilidade de todos deve cuidar-se do valor estético da criação.

 

  1. Magistério de Bento XVI

 

Vou apenas citar a Encíclica «Caritas in Veritate» que num dado passo afirma que «o tema do desenvolvimento aparece, hoje, estreitamente associado também com os deveres que nascem do relacionamento do homem com o ambiente natural» (CV. 48).

Nas sendas de Paulo VI, novamente se interliga o desenvolvimento com as questões da natureza e da criação.

Refere-se que «A natureza é expressão de um desígnio de amor e de verdade» (CV. 48). Aliás, «precede-nos, tendo-nos sido dada por Deus como ambiente de vida» (CV. 48).

Na verdade «o homem interpreta e modela o ambiente natural através da cultura, a qual, por sua vez, é orientada por meio da liberdade responsável, atenta aos ditames da lei moral» (CV. 48). Daí que «os projectos para um desenvolvimento humano integral não podem ignorar os vindouros, mas devem ser animados pela solidariedade e a justiça entre as gerações, tendo em conta os diversos âmbitos: ecológico, jurídico, económico, político, cultural» (CV.48). E, nós acrescentaríamos o teológico.

Apelando à responsabilidade global e à solidariedade, o Papa Bento XVI sublinha que «é lícito ao homem exercer um governo responsável sobre a natureza para a guardar, fazer frutificar e cultivar inclusive com formas novas e tecnologias avançadas, para que possa acolher e alimentar condignamente a população que a habita» (CV. 50).

De facto, «há espaço para todos nesta nossa terra: aqui a família humana inteira deve encontrar os recursos necessários para viver decorosamente, com a ajuda da própria natureza, dom de Deus aos seus filhos, e com o empenho do seu próprio trabalho e inventiva» (CV. 50).

Esta responsabilidade e solidariedade focam também os vindouros e por isso a ecologia desafia a olhar e projectar o futuro digno do ser humano e das novas gerações.

 

  1. A Encíclica «Laudato Si» do Papa Francisco

 

Certamente que o texto desta notável Enciclica irá estar presente nas diversas comunicações o que me dispensa de estar a citá-la de forma pormenorizada.

Por isso lembro apenas alguns parágrafos que nos ajudem a situar o tema que nos reúne aqui hoje.

Praticamente no inicio desta Enciclica, o Papa Francisco refere que «o urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar» (LS.13).

Este convite a caminharmos juntos na defesa da casa comum é sublinhado novamente quando diz que «os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos» (LS. 13). Lança, por isso um veemente apelo ao diálogo para a defesa do planeta.

Oferece os objectivos deste texto quando realça que espera «que esta carta encíclica, que se insere no magistério social da Igreja, nos ajude a reconhecer a grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos pela frente» (LS. 15).

De facto, «na tradição judaico-cristã, dizer “criação” é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projecto do amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado» (LS.76).  Aliás, «a natureza entende-se habitualmente como um sistema que se analisa, compreende e gere, mas a criação só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal» (LS. 76).

Na verdade, por isso aqui estamos para reflectir e partilhar da grandeza, da urgência, do projecto de amor e da beleza que nos oferece uma verdadeira teologia da criação.

Faço votos de bom trabalho. Muito obrigado.

 

+João Lavrador, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais