Sé. Angra.

O anúncio do evangelho deste domingo tem uma dupla dimensão: por uma lado a afirmação da universalidade da salvação em Cristo, com toda a urgência missionária que isso supõe; por outro, a séria advertência de Jesus: «esforçai-vos por entrar pela porta estreita», que tem eco na 2ª. Leitura da carta aos Hebreus.

Tudo parte da pergunta de um desconhecido: «Senhor são poucos os que se salvam?». Jesus não responde com percentagens, mas mostra que a questão é pertinente. Não sei se hoje alguém faria esta pergunta sobre a salvação. Mas na verdade quando estamos aflitos ou em perigo é o que pedimos: no mar revolto, numa tempestade, num terramoto, num incêndio, numa trovoada com os relâmpagos a cair sobre nós, numa doença incurável, num acidente, na prisão, perante a morte, na consciência do pecado. É o último grito que damos, do mais profundo do nosso desejo, de um pedido de ajuda e de graça.

Na primeira dimensão do anúncio aprendemos pelos ensinamentos de Jesus que Ele quer à sua mesa, sentados com os patriarcas, os profetas e todos os santos, na comunhão do seu Reino a todos, à gente de todas as partes. Recorde-se o que diz a Palavra de Deus: «Hão-de vir do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, sentar-se à mesa no Reino de Deus». Já o profeta Isaías nos havia dito «Eu virei reunir todas as nações, para que venham contemplar a minha glória» e ainda chegarei «às ilhas remotas que não ouviram falar de Mim nem contemplaram a minha glória».

Também no Livro do Apocalipse ouvimos: «Não causeis dano à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus. E ouvi o número dos que foram marcados: cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel. Depois disto, vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas».

A 1ª. Leitura e o salmo responsorial – «Ide por todo o mundo e anunciai o evangelho. Louvai o Senhor todas as nações, aclamai-o todos os povos» orientam-nos neste sentido: o novo templo de Jerusalém está aberto a todos. Evoca-se um texto e um espírito semelhantes ao da epifania: «Levanta-te e resplandece, Jerusalém, porque chegou a tua luz e brilha sobre ti a glória do Senhor. As nações caminharão à tua luz e os reis ao esplendor da tua aurora. Olha ao redor e vê: todos se reúnem e vêem ao teu encontro».

A 2ª dimensão do anúncio, depois da universalidade da salvação e da graça, centra-se na exortação a entrar pela porta estreita. Já a 2ª. Leitura alerta-nos para a necessidade de ser corrigidos, e como a correcção nunca é agradável, mais para aquela a recebe do que para quem a faz; alerta-nos para as dificuldades e provações por que temos de passar através de  sofrimentos e contradições. Falar da necessidade de correcção para a salvação é muito oportuno numa época pouco inclinada a acreditar que as dificuldades possam ter algum sentido.

Toda a graça, dons e gratuitidade origina a correspondente resposta, missão e tarefa pessoais. Os dons de Deus, uma vez recebidos convertem-se em exigência. Jesus não foi enviado para resolver os nossos problemas, mas para nos animar e ajudar a que cada um de nós a assumir com verdade, esperança e responsabilidade a sua própria história. Não cruzamos os braços, não ficamos parados ou resignados, como se nada fosse connosco. A palavra de ordem é «esforçai-vos», empenhai-vos.

Mesmo aqui devemos estar atentos à tentação subtil farisaica, que é pôr a confiança no seu próprio agir moral. De quem crê que o mero cumprimento da lei e do rito lhe assegurar um direito diante de Deus. É como se aplicasse «a tirania do mérito», tão presente na cultura actual, reduzindo a vida cristã a um puro actuar moral. É quase como um neopelagianismo que anula o valor da graça para confiar só nas próprias forças. Ou então um gnosticismo que reduz a fé cristã a um subjectivismo que encerra o individuo na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos. O esforço moral significa mais a expressão de um estado novo do cristão que uma simples obediência a um imperativo externo e abstracto. Todo o compromisso cristão há-de partir do reconhecimento da primazia da graça transformadora do Espírito Santo.

A moral cristã insiste em que o primado está no amor misericordioso de Deus, e portanto aparece como uma mensagem e uma boa notícia, que nos liberta e nos realiza, nos enche de ânimo e de esperança, que conduz à felicidade. «Esforçai-vos» significa um esforçar-se por entrar pela porta estreita da graça do Reino, estreita porque só pode entrar por ela os que se fazem como as crianças, os simples, os pequenos.

A esta porta estreita podemos associar a assunção pessoal da paixão e da cruz. Não há cruzes largas, pois o que tem valor é caro, custa. Ora, «carregar a cruz cada dia» é entrar pela porta estreita. São João apresenta Jesus no evangelho como sendo a porta e é por ela que se passa para entrar no seu reino. Está aberta, mas também se fecha. Hoje são Lucas lembra-nos não só que Jesus é a porta, mas que essa porta é estreita. Uma vez que não devemos mudar de porta nem nos compete alterar a sua configuração e medidas, então será cada um a adaptar-se, ou seja a converter-se, a fazer-se mais pequeno, a baixar-se, a reduzir o peso e o inchaço de si mesmo, a ser humilde e moderado, e a ficar leve para poder passar e entrar, sentar-se à mesa e cear.

«Desejo ardentemente comer esta Páscoa connosco, antes de padecer. (Lc 22, 15), diz Jesus. Ninguém ganhou o lugar nessa Ceia, todos foram convidados, ou melhor dito, atraídos pelo desejo ardente que Jesus tem de comer esta Páscoa connosco.

A imagem da mesa do reino de Deus, como lugar de reunião da diversidade na unidade da salvação, pode referir-se à Eucaristia que estamos a celebrar. O primeiro convite é a entrar e a sentar-se. Toda a celebração eucarística é precisamente isto, não é um convite para elites; aqui chega gente de toda de todas as partes, classes, condições e idades; é Deus quem nos convida e convoca. Esta, antes de ser uma mesa de amigos, até de pessoas que não se conhecem, é a mesa de pecadores arrependidos e redimidos, a «mesa dos salvados» pela graça.

Hélder, Administrador Diocesano de Angra