Ponta Delgada.

Este dia é para a comunidade cristã o quinto domingo de Páscoa, dia em que o Ressuscitado de pé junto de nós e sentado junto do Pai, venceu as cadeias do pecado e da morte, e se ergue vivo e glorioso, de um modo especial quando nos reunimos para celebrar a Eucaristia como Ele fez, nos deixou e mandou fazer.

Saúdo o Senhor Comandante da Zona Marítima dos Açores, e a na sua pessoa toda a Marinha aqui presente, demais autoridades civis e miliares, à volta do dia anual em que a Armada Portuguesa toma consciência da sua grandeza, quer tempo, do século XII aos nossos dias, quer espaço, na sua missão longínqua nas fronteiras do Atlântico Norte, ou na costa da ilha de São Jorge, e também no dia em que rezamos em sufrágio pelos camaradas que já partiram, unidos no lema «vontade de bem fazer».

A palavra de Deus fala-se das viagens e mobilidade dos apóstolos Paulo e Barnabé e do exercício da sua missão de levar o nome de Jesus a outras paragens. «De Atalia embarcaram para Antioquia, de onde tinham partido, confiados na graça de Deus. À chegada, convocaram a Igreja, contaram tudo o que Deus fizera com eles e como abrira aos gentios a porta da fé».

Nós somos herdeiros beneficiários desta viagem, de marinheiros e apóstolos, que um dia embarcaram num local de partida e aqui aportaram para nos transmitirem a fé e a graça de Deus, no respeito e na liberdade, ficando nós assim mais humanos e com um horizonte de esperança maior do que aquele que o mar nos oferece e que qualquer açoriano sonha para se transcender da própria ilha sem nunca a deixar.

João no Apocalipse, de viagem à nossa frente, diz ter já avistado «um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido, e o mar já não existia». À primeira vista esta não é uma boa notícia para hoje: de que serve a marinha quando o mar não existir? Explico.

Na civilização moderna, o mar está cheio de conotações positivas, porque é fonte de riqueza, de sol, meio indispensável para transporte de pessoas e mercadorias, fonte de lazer, de passeio e de saúde. Na Bíblia, acontece muitas vezes o contrário, tal como nas mitologias antigas ou na poesia popular, desde o dilúvio do Génesis a esta passagem do Apocalipse, o mar e as suas águas profundas e nos seus abismos, simbolizam a vida e a morte, monstros antigos e povos inimigos. Só Deus, criador do céu, da terra e do mar, o domina como Jesus fez caminhando sobre as águas.

O mar tem um sentido paradoxal, aqui mesmo negativo, símbolo de todas as forças do mal. É neste sentido, que o Ressuscitado, vivo e glorioso, vencendo todas as forças do pecado, da morte e do mal, vencerá também o mar. Quando toda a criação for finalmente refeita, quando o projeto de Deus se realizar plenamente no tempo da nova Jerusalem, o mar deixará de existir com a suas provações e os seus medos. Naturalmente não se trata de um mar de águas e de peixes, mas do mar apenas como símbolo do mal que nos pode causar.

Chegados ao texto do evangelho deste dia, temos outra despedida, desta feita de Jesus, na última Ceia, no cenáculo, razão pela qual estamos aqui. Trata-se de um texto pré-pascal, em que o quadro da traição e da entrega de Jesus por Judas estava definido e conhecido. Quando há uma despedida e uma morte há um testamento, a manifestação das últimas vontades.

Jesus ao instituir a eucaristia, mandou-nos fazer o que nós estamos a fazer em memória d’Ele, da entrega do Seu corpo e do seu sangue, da sua alma e da sua divindade, e certos da Sua presença, aqui estamos a receber e dar essa vida nova da graça. É neste contexto que Jesus lava os pés aos discípulos, instituindo outro modo de estarmos no mundo familiar, profissional, social, eclesial. Os poderosos deste mundo exercem domínio sobre os outros, sobre a sua liberdade, ofendendo a dignidade de outro humano. Entre nós, os discípulos de Jesus, não deve ser assim. Então, S. João deixa-nos narrado o gesto do lava-pés, para nele vermos o estilo e o jeito que devem marcar as nossas relações, não de domínio, mas de serviço.

Postos estes dois imperativos: «fazei isto em memória de Mim», e «assim como Eu fiz deveis vós fazer também», temos o terceiro imperativo que é o mandamento novo do amor: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei». Podemos objetar: se isso é tão antigo, como que lhe chamam novo? Explico. Antigo, no tempo da selva, era «olho por olho, dente, por dente», depois «não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti», por defeito.

Mais tarde: «faz aos outros aquilo que queres que te façam a ti».  Hoje, «ama os outros como Jesus te amou», ou seja, o mandamento é novo porque eu já não devo amor os outros com o meu amor (que pode ser escasso), mas com o amor d’Ele que «repousa em mim, me consagrou e enviou a anunciar a paz e o bem». Assim percebemos melhor como é que em Jesus não há vingança, ressentimento, ódio, no seu processo de julgamento e condenação, inclusivamente na infidelidade e traição do seu discípulo e amigo Judas.

Transpondo o nome de Judas para o nosso, concluímos que Jesus nos amou primeiro, não obstante as nossas fragilidades, limites e debilidades. Foi Ele que nos tornou dignos do seu amor que não conhece limites e nunca acaba. O amor, no dizer do Cântico dos cânticos «é mais forte do que a morte e as águas do mar não o podem submergir». Concedendo-nos o novo mandamento hoje, Jesus pede-nos que nos amemos uns aos outros não só e não tanto com o nosso amor, o meu amor, mas sobretudo, ou ampliando com o Seu, que o Espírito Santo infunde nos nossos corações se o invocarmos com fé.

Assim, quando recebemos o Espírito Santo, recebemos a graça de Deus e a sua misericórdia, quando nos relacionamos com os outros não os amamos com o nosso amor, à nossa escala, mas com o amor de Deus, que pelo seu Espírito Santo está em nós. Aqui está a diferença do que é amar sem Deus ou fora d’Ele e do é amar em Deus e n’Ele. O verbo é o mesmo, mas a substância é qualitativamente diferente e superior.

Deixo-vos com a palavras de um amigo, Marcolino Candeias, que nas suas inquietações escreveu assim: «Mas se tenho de partir que de novo eu parta / é talvez bem melhor do que ficarem / meus pés no cais chumbados em argolas / meus olhos no horizonte ao sonho a velejar. /Que eu parta. E assuma o risco de partir/ fender a bruma sobre este coração cerrada /colher num bojador espinhos perfumados / partir e não saber em que angra fundear. /Largar amarras. Ir decifrando / quantos portulanos na vida houver a decifrar. /E se no fim faltar o cais para a chegada / o mar também é terra onde morar».