Sé Catedral. Angra do Heroísmo | 2 de abril de 2023 [PDF]

1. Naquele dia, quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou em alvoroço. Sempre que Jesus chega, começa o alvoroço. Também hoje, o povo sai à rua. Talvez por tradição ou levados pela onda do que sempre se fez, mas vão entre cânticos e palmas. Sentado num jumento, orgulhoso das crianças, dos jovens, da multidão anónima, vai Jesus. Vai orgulhoso de nós.

Há sempre quem tenha abandonado tudo para O seguir; há quem esteja curioso; há quem vá atrás da sua fama de milagreiro; há quem se sinta incomodado. Nesta última semana, a Santa, cada um vai ter oportunidade de tomar posição clara, indo ou não com Ele. Fala-se de dois cortejos que nos descompõem por completo. No primeiro vai Jesus carregado por um jumentinho; no segundo, Ele suportando uma cruz que não mereceu. Não deixa de ser estranho, como tantos cortejos dos nossos dias, em que tanto se gritam Hossanas como, mais tarde, alguns se esquecem de tudo e gritam: “crucifica-o”! Jesus na parábola do trigo e do joio, conta que quando “Os servos perguntaram ao dono da seara: ‘Queres que vamos arrancar o joio?” (Mt 13, 28) Ele lhes respondeu: “Não. Deixai-os crescer juntos até à colheita”. Jesus é de todos, como somos, fiéis e infiéis, justos e injustos. Até aos amigos próximos que O abandonaram, Jesus continuou a ser-lhes fiel e a confiar neles. Do cortejo transborda um amor total, sem limites nem condições.

Porque se sujeitou Jesus a tanto? Intuímos que o Senhor percorre um caminho, que é o de grande parte da humanidade: dos que não têm liberdade e são forçados a prisões e torturas; dos doentes graves que se veem presos a uma cama; dos ultrajados na sua dignidade e nos seus direitos humanos, o caminho dos sós e dos tristes, dos que sofrem de variadas formas…

 

2. Vale a pena pensar que a vida terrena de Jesus culmina, segundo o Evangelho de Mateus que ouvimos, num lancinante grito: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”. Naquele “porquê” que exprime o momento existencial mais intenso da sua relação com o Pai, está um grito que se prolonga nas interrogações, ânsias e dramas nossos e dos homens de todos os tempos. Aquele grito abre um espaço sem fronteiras, convida ao encontro sempre possível com o Pai, porque aberto por Jesus com a sua própria vida. Choca que Jesus não é alguém cheio de si mesmo e das próprias seguranças e que não se impõe acima de ninguém: nem de Judas, nem de Caifás, nem de Pilatos, nem de Pedro que o negou. Mas sai-lhe esse grito ao Pai. Um grito do Homem-Deus que se fez radicalmente pobre para se colocar ao alcance de todos, irmão de quem quer que seja. Um grito que abre ao diálogo com qualquer um, a partir do que há de mais humano: a experiência do limite que é a dor.

Podemos perguntar se as feridas, as cruzes e a dor – factos negativos e, como tal, apenas privação do bem – podem produzir uma realidade positiva, como a salvação. A verdade é que não fomos salvos pela dor de Cristo, mas pelo seu amor! Mais precisamente, pelo amor que se exprime no sacrifício de si mesmo à vontade do Pai e na aceitação da cruz. Pelo amor crucificado que o Pai ressuscitará!

 

3. Por último, olhemos para a Sua mãe. Onde estava ela no momento do grito “Porque me abandonaste”? Porque não chama pela mãe? Ela estava apenas ali, firme na vontade de Deus a quem tinha dito “Faça-se em mim…”. Ela acolhe o mistério daqueles momentos fatais. Vive um silêncio que é disponibilidade total. “Eis o teu filho”, diz-lhe Jesus, apontando para João. Maria perde o Filho e ganha a humanidade. “Eis a tua mãe” diz Ele a João! E nasce a Igreja que será a presença sempre visível do Ressuscitado entre nós.

Que o Abandono de Jesus e a Desolação de Maria possam atrair muitos frutos de purificação na Igreja de hoje para nosso bem e de todos os homens nossos irmãos. A Ele rezo:

Ajuda-me, Senhor, a entender este mistério do teu abandono, mas ajuda-me sobretudo a amar-Te em cada dor própria ou alheia, a reconhecer-Te e amar-Te em cada um que sofre ao meu lado, em todos os que são arrastados pelo ateísmo prático, nos incapazes

de te amar crucificado no grito de cada pobre.

Ensina-me, Tu que não és estranho a nenhuma desgraça e experimentaste o abandono do Pai, a preencher todos os vazios da minha vida para Te dar a cada irmão em veste de Amor, de Alegria, de Paz e de Esperança. Em veste de Ressuscitado!

Até podem ser envergonhadas as nossas orações, mas Jesus olha aos lábios tímidos que os pronunciam. Que consigamos balbuciar: “verdadeiramente este homem era Filho de Deus”. Boa Semana Santa.

 

+ Armando, Bispo de Angra