Igreja Matriz de São Miguel Arcanjo. Vila Franca do Campo | 27 de agosto de 2023 [PDF]

O Evangelho de hoje apresenta-nos Jesus a andar autenticamente “de Anás para Caifás”, dos judeus para os romanos, de um Sumo sacerdote para outro. Buscavam relatos de infração à Lei Judaica ou Romana por parte de Jesus e, assim, encontrarem razões para se verem livres dele e da sua doutrina. No final, tudo se decidiu com o “lavar das mãos por parte de Pilatos”, prova da indiferença pela vida.

 

De facto, seria Pilatos a gritar: “eis o homem” e a assinar o decreto que extinguia o direito à diferença dentro do Judaísmo”. A indiferença leva a injustiças e dá oportunidade aos prepotentes de se aproveitarem. “O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética… O que me preocupa é o silêncio dos bons”. (Martin Luther King)

 

Na Via Sacra dos jovens com o Papa na Jornada Mundial da Juventude, no início deste mês, dizia o texto de uma das estações: “muitos jovens sentimos isto hoje, Senhor, que o futuro nos está a ser tirado. Dizem-nos que a vida está cheia de oportunidades, mas é difícil ver onde estão essas oportunidades quando o dinheiro não chega, quando não se consegue arranjar trabalho e quando ter acesso à educação é, na prática, muitas vezes impossível. E continuavam pedindo: “Senhor, mesmo quando Te condenaram à morte, Tu não Te deixaste ir abaixo. Explicaste a Pilatos que ele não teria nenhum poder sobre Ti se Deus não o permitisse. E, com o Pai a Teu lado, seguiste em frente, confiando no futuro. Ensina-nos a fazer o mesmo”.

 

Quantas outras categorias de pessoas não farão hoje orações semelhantes!

 

Ser cristão exige coragem e decisão. Já não se é cristão por tradição nem por cumprir obrigações ou devoções. “O cristão vive não em si mesmo, mas em Cristo e no próximo. De outro modo, ele não será um cristão.” Um cristão é sempre um líder atento aos rumos a dar à sua própria vida e a caminhar com os outros irmãos. Rino Camilleri no seu livro “O Inquisidor” escreveu: “A maior dor de um amigo é não poder substituir o outro quando ele sofre”. Já sentimos algo assim? O comodismo reinante, pode levar-nos também a nós cristãos a instalarmo-nos confortavelmente, a esconder-nos por detrás do “sempre se fez assim” e seguirmos indiferentes aos sofrimentos dos irmãos, às situações de pecado social, o desprezo pelo pobre, o velhinho, os diferentes, as periferias. Dizia Gandhi: “Eu seria cristão, sem dúvida, se os cristãos o fossem vinte e quatro horas por dia. Admiro Jesus Cristo, mas não os cristãos”. Terrível…

 

Faz-nos bem olhar para um grupo de 400 jovens russos no seu 10º encontro nacional da juventude católica da Rússia, a decorrer estes dias a que o Papa se ligou durante mais de uma hora. Alguns jovens, mesmo no meio das dificuldades, estiveram em Lisboa na Jornada Mundial da Juventude, outros fizeram 9000 Kms para estar presentes neste encontro para refletirem sobre o pós Jornada Mundial da Juventude. Dizia-lhes o Papa: “Desejo-vos, jovens russos, a vocação de artesãos da paz no meio de tantos conflitos e tantas polarizações que vêm de todos os lados e que assolam o nosso mundo”. “Convido-vos a serem semeadores de sementes de reconciliação, pequenas sementes que, neste inverno de guerra, não brotarão no solo congelado por enquanto, mas florescerão em uma futura primavera. Como disse em Lisboa: ‘Tenham a coragem de substituir os medos por sonhos; substituam os medos por sonhos, não sejam administradores de medos, mas empreendedores de sonhos! Deem-se ao luxo de sonhar grande!’”, desenvolveu o Papa, retomando três ideias a partir do lema da Jornada Mundial da Juventude Lisboa que era “Maria levantou-se e partiu apressadamente”.

 

Nestas grandes festas em honra do Senhor Bom Jesus da Pedra olhemos para o grande mistério de amor que Ele encerra. Um amor incapaz de se fechar nas leis vigentes, mas aberto à novidade, aos desafios dos homens concretos. O seu amor escorre das feridas abertas, dos espinhos cravados, do suor e lágrimas de dor e dá frutos de vida e esperança. Perante o abuso dos que o julgam e maltratam, responde com o silêncio do amor à vontade do Pai, perante a cobardia do Pedro que o diz desconhecer, responde com a oferta da vida por ele e por todos os que farão como ele. Neste Bom Jesus há uma lei que O move: a paixão por todos, todos, todos os homens e mulheres, gente concreta, frágil, pecadora, não gente ideal, já perfeita e santa. Como dizia o Papa em Portugal: “Deus ama-nos como somos, não como gostaríamos de ser”. Anima-nos Pedro que, mesmo negando-o, viria a ser “a pedra sobre a qual Cristo edificaria a Sua Igreja”. Deus sempre prometeu chefes que conduzissem o Seu Povo. Pedro é um deles e, estranhamente, aparece aqui no seu mais vergonhoso momento de fraqueza e hipocrisia, em que negou conhecer o mestre. Os grandes também falham. Saberá por experiência que só sendo humilde e confiando na misericórdia de Deus poderá exercer a sua autoridade como serviço que convença todos os outros. Poderá unir confiado em Cristo e não em si mesmo. Será motor e não centro. Para dominar e escravizar há muitos candidatos, para liderar com a sabedoria da experiência e do exemplo, nem por isso. É mais fácil mandar fazer, colocar pesos e cruzes aos ombros dos outros do que carregar os pesos e mostrar como se faz. “Como eu fiz, fazei vós também”, dissera Jesus na última Ceia ao lavar os pés.

 

E nós? O que dizemos sobre Jesus no bar, no autocarro, quando algum jovem morre de uma doença incurável, quando um ataque cardíaco acaba com a vida de um jovem pai? Quanto é que o Mestre conta na vida das pessoas concretas e de todos nós aqui reunidos? Jesus sabe bem o que as pessoas dizem e ouve os gritos de cada um. Ele sabe bem, desde que se fez homem, quanto suor é necessário para ver Deus nas coisas humanas, sobretudo nas tristes, nas que estão longe da nossa vontade. O que é que as pessoas dizem de Jesus? Seria bom recolher as opiniões de todos, porque todas elas contêm algo de verdadeiro, de correto, de valioso. As pessoas pensam sempre alguma coisa do Filho do Homem e, muitas vezes, o que pensam resulta da forma como encontram a Igreja hoje, para o bem e para o mal.

 

Seria também interessante se hoje, aqui, algum meio de comunicação social fizesse uma sondagem entre nós: “Quem é Jesus para ti”? “Como falas Dele para os outros homens”? “Diante do mal, falas de Jesus ou calas-te, lavando as mãos”? Para responder, não é necessária a sabedoria humana, mas uma experiência viva com o Mestre. É estando com ele, escutando quem ele escuta, ou seja, o Pai, que se pode responder. Se Jesus vale mais do que tudo, porque eu sei quem ele é, a minha vida transforma-se em conformidade.

 

A nossa vida de fé e as expressões da nossa vida de fé são muitas vezes empobrecidas pela doença do impessoal. Só conseguirá falar de Jesus quem, pelo menos uma vez o conseguiu tratar por Tu e rezou mais ou menos com estas palavras: “Tu és para mim aquele em cujo nome eu arrisquei e continuo a arriscar, dia após dia, a minha vida. Tu és para mim aquele em cujo nome recomecei a andar, apesar de estar no chão. Tu és para mim aquele que me devolveu a alegria de caminhar porque estendeste a tua mão e curaste as minhas feridas. Tu és para mim aquele que me devolve a alegria de viver, mesmo depois de ter provado a amargura do pecado”.

Se já assim rezámos, a esperança vencerá sempre. Seja louvado o Senhor Bom Jesus da Pedra!

 

+ Armando, Bispo de Angra