Catedral de Angra.

O evangelho deste domingo coloca-nos perante a identidade de Jesus e a partir dela perante as condições para os seus futuros discípulos e seguidores, que hoje somos nós. Se fosse por critérios pessoais, no âmbito das sanjoaninas e dos jubileus sacerdotais, certamente não escolheríamos este texto, preferíamos outro mais festivo e adaptado à mentalidade cultural dos nossos dias. Mas não será assim, pois dentro da festa ou quando ela passe, a identidade vem ao de cimo e a nossa vida há-de conformar-se com a de Cristo em todas as circunstâncias, «na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, todos os dias da nossa vida», tal como nos esposos.

Impressiona o contexto inicial do evangelho que começa por dizer que «um dia, Jesus orava sozinho, estando com ele apenas os discípulos». Trata-se de uma solidão não deprimente, pois por um lado Jesus estava a orar com o Pai e por outro estavam apenas com Ele os discípulos. É a prova de que a nossa solidão tantas vezes necessária, não será doentia se nos sentirmos na presença e em comunhão com Pai, com Cristo e com o Consolador, estando com os outros discípulos. A comunhão na Igreja é o antípoda da solidão.

A identidade de Jesus não se afigura de modo linear, mas paradoxal. À reposta de Pedro, talvez tentada por uma glória demasiado humana, Jesus tem necessidade de acrescentar a dimensão mais sofredora, e por isso negativa, da sua forma de ser o «Messias de Deus». É efectivamente o Messias mas não sem sofrer muito, por amar muito. Este é o caminho que «tem de assumir» necessariamente e que o faz chegar à ressurreição. É a solidariedade com os que sofrem e a luta contra o mal que faz com que Jesus, o Filho de Deus, seja Messias deste modo e não por um capricho ou gozo do Pai em fazer sangue.

Pedro, em nome de todos os discípulos, acerta na resposta à pergunta de Jesus e diz-Lhe: «És o Messias de Deus», o consagrado de Deus, embora as outras respostas fossem plausíveis dentro da mentalidade judaica e das expectativas messiânicas que alimentavam. Jesus dá-se conta que os Doze, pela voz de Pedro, receberam do Pai o dom da fé e por isso começa a falar-lhe abertamente.

Ainda hoje nós não dizemos a uma pessoa que ainda não está madura ou preparada para receber uma notícia com dificuldades inerentes para não a desanimar, esperamos por uma melhor ocasião para lhe «falar abertamente», dizer tudo o que é necessário, ainda que com obstáculos pela frente, para os quais nos devemos preparar. É assim que, neste estofo, Jesus anuncia pela primeira vez a sua Paixão, isto é, a sua Páscoa: «o Filho do Homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas, tem de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia». Mais tarde estas palavras serão o núcleo da transmissão da fé.

Depois de ter concluído o diálogo com os apóstolos, temos a segunda parte do evangelho deste dia dirigida pessoalmente a cada um de nós, pois só respondendo como Pedro à primeira pergunta, temos condições para entender e entrar na segunda etapa. Ou seja Jesus não dá aos discípulos o que não toma primeiro para Ele, mas também não lhes deixa nada menos, se não vejamos: «Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-me».

Não se trata de uma cruz ornamental, de uma cruz ideológica, mas da cruz de cada dia, do cumprimento do próprio dever, do sacrifico de amor pelo próximo – pelos pais, pelos filhos, pela família, pelos amigos, pelos colegas, e até pelos inimigos, pela disponibilidade e abertura de sermos solidários com os pobres e os mais frágeis, pela não indiferença com o com o sofrimento dos outros, pela cruz dos que lutam pela justiça e da paz, no dizer da Gaudium et spes.

Neste espírito, recorda-nos o último Concílio: «É verdade que para o cristão é uma necessidade e um dever lutar contra o mal através de muitas tribulações, e sofrer a morte; mas, associado ao mistério pascal, e configurado à morte de Cristo, vai ao encontro da ressurreição, fortalecido pela esperança. E assim, por Cristo e em Cristo, esclarece-se o enigma da dor e da morte, o qual, fora do Seu Evangelho, nos esmaga» (GS 22). Assim se entende as palavras Jesus: «Quem perder a sua vida por minha causa, salvá-la-á». Renunciar à própria vida significa não se apoderar dela, mas entregá-la, investir, para não a perder. Parece um paradoxo e de facto é. É um sinal de contradição como professou o velho Simeão com o Menino nos braços.

Estas palavras são ditas a todos os discípulos baptizados, sejam leigos, consagrados, diáconos e padres. A estes o Bispo diz-lhes durante a ordenação presbiteral: «Recebe a oferenda do povo santo para a apresentares a Deus. Toma consciência do que virás a fazer; imita o que virás a realizar, e conforma a tua vida com o mistério da cruz do Senhor».

A ideia ingénua e ilusória de que se faz uma escolha linear para toda a vida, sem dificuldades e obstáculos, em que tudo segue em conformidade com o plano inicial, deve ser substituída pela ideia de que nada existe de mágico ou predestinado nas escolhas ainda que livres e para toda a vida. Ora, isso não nos dispensa de escolher de novo todos os dias, conforme diz específica e unicamente a versão de Lucas do anúncio da Paixão, para recomeçar e prosseguir o caminho. É preciso renovar os motivos, a causa, a razão da escolha, à medida que se cresce e evolui, sempre com o esforço de discernir, reflectir e arriscar. Se para Cristo viver é perder, há sempre que morrer a algo para ressuscitar para outro um horizonte novo: é assim quando nascemos do ventre materno, quando deixamos pai e mãe para outra missão, e sobretudo quando deixamos este mundo.

Este é o dia em que habitualmente temos ordenações de novos padres na nossa igreja nos Açores. Lamentavelmente este ano não teremos, não só por não haver Bispo, a quem cabe ordenar os presbíteros, mas sobretudo por não haver candidatos. Não podemos desistir de cumprir estas condições: «quem quiser ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-me».

Ao fazê-lo estamos a responder à nossa vocação de discípulos e para tal podemo-nos preparar desde já no seio da família, na escola, na catequese, nos grupos juvenis, na paróquia, no Seminário ou na Universidade para uma vocação de entrega total na vida sacerdotal, consagrada e missionária. Não é mais do que dar cumprimento ao evangelho de hoje quando Jesus estava sozinho a orar, apenas com os discípulos.

Temos, porém, a graça de celebrar as bodas de prata e de diamante de três padres da nossa Diocese, que tornam viva a expressão do evangelho deste dia. Demos graças a Deus pelo dom das suas vidas e um obrigado aos agraciados.

O Santo Padre, o Papa Francisco, a nosso pedido e através dos nossos padres em Roma, apesar de Angra estar em sede vacante, envia de todo o coração a bênção apostólica aos padres Fernando Cabral Teixeira pelos 60 anos de ordenação presbiteral e aos padres Francisco Sales Diniz e José da Encarnação Bettencourt Cabral pelos 25 anos de entrega à causa do Reino, razão pela qual a Igreja existe.

Nestes três baptizados, um dia também ordenados, realiza-se, expressa-se e testemunha-se o evangelho de hoje: «Se alguém quiser ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-me».

 

XII Domingo do Tempo Comum

P. Hélder, Administrador Diocesano de Angra