Sé Catedral. Angra do Heroísmo | 12 de fevereiro de 2023 [PDF]
COM A LEI NO CORAÇÃO
Ilustres cónegos desta respeitável Instituição secular que é o nosso Cabido da Catedral, saúdo-vos fraternalmente no dia em que celebrais o 8º aniversário do seu restabelecimento. Já remonta a 3 nov 1534 a sua fundação, pela mesma bula “Aequum reputamus” de Paulo III, que criou a Diocese de Angra.
Reunimo-nos para dar graças a Deus na Sede do bispo diocesano que é também sede do Cabido e para onde o Senhor nos convida a celebrar a sua oferta em sacrifício por amor à humanidade que quer redimida. O Senhor quer-vos disponíveis para cooperar nos trabalhos e iniciativas da Sé Catedral de modo que esta apareça, efetivamente, como a Igreja-Mãe de todos os cristãos desta diocese, e onde o culto a Deus seja modelo em celebrações dignas desse mesmo louvor.
A Lei no coração poderia ser o tema da Liturgia da Palavra deste domingo. A primeira leitura (Sir 15, 15-20) diz-nos que um mandamento é uma oferta, uma dádiva de Deus ao homem, não uma imposição. Uma oferta que solicita a liberdade do homem enquanto lhe revela o poder que tem: “Se quiseres, podes observar os mandamentos” (Sir 15, 15). No texto do Evangelho (Mt 5, 17-37) o significado dos conselhos de Jesus é o aprofundamento da liberdade humana que encontra no coração a sua sede invisível e nas relações com os outros o lugar da sua manifestação como responsabilidade libertadora.
Assim, podemos ver na passagem do Sermão da Montanha do texto litúrgico do Evangelho um convite à conversão do coração, a alargar essa tenda que acolhe o frágil amor. E podemos ver as exigências colocadas por Jesus como elementos para uma aprendizagem sobre o amor, já que ele é a plenitude e a realização da Torá: Mt 22,37-40. E como a Torá já tende a mudar o coração humano, aqui na boca de Jesus, o Decálogo torna-se mais exigente e até uma denúncia da hipocrisia: a hipocrisia daqueles que não estão manchados pelo assassinato, mas matam o irmão diariamente com raiva violenta, com a palavra que transmite desprezo e aniquila o outro (Mt 5, 21-22); a hipocrisia daqueles que fazem da liturgia o véu que esconde os seus ódios e antipatias para com os outros; a hipocrisia daqueles que se mostram indiferentes ao facto de outros poderem ter algo contra ele (Mt 5, 23-24). E note-se que Jesus não diz se tem razão ou não esse outro que tem algo contra quem está a apresentar a sua oferenda no altar: por trás do erro (sempre dos outros) e da razão (sempre de alguém) escondem-se normalmente hipócritas que não têm a coragem de reconhecer os seus próprios erros e horrores. A hipocrisia, mais uma vez, daqueles que não consumam materialmente o adultério, mas cometem muitos no próprio coração (Mt 5, 27-28). As referências ao olho, à mão e depois à boca, presentes nas palavras de Jesus, encontram a sua raiz na referência ao coração, ao desejo. Este é, então, o caminho que Jesus quer propor ao crente: um caminho que transforme o coração e leva à plenitude do amor. Erasmus de Roterdão escreveu: “Quem ama o seu vizinho com caridade sincera e cristã, possui a essência de toda a lei mosaica; se falta a caridade, as leis, tão numerosas quanto se queira, não são suficientes. O mesmo que dizer: quem ama não mata, não comete adultério, não alimenta inimizades, examina-se perante o ódio de alguém…
Também o ato de culto, o momento em que celebramos o primado de Deus sobre as nossas vidas, será autêntico e justo se é também uma memória do outro, do seu sofrimento e do que ele nutre por nós ou contra nós (Monte 5, 23). Caso contrário, o fazer memória de Deus acompanhado pelo esquecimento dos irmãos e irmãs, do mal que lhes fizemos, tornar-nos-á cúmplices da injustiça. Aqui é necessária uma suspensão: o ato ritual não é abolido, mas suspenso, porque obedece a uma prioridade: “Primeiro, reconcilias-te com o teu irmão, só depois vens apresentar a tua oferta” (Mt 5, 24).
A suspensão implica uma obra interior da memória do outro: Jesus está a dizer que o ato litúrgico não pode ser separado da vida, porque, na verdade, o culto autêntico é o que acontece nas relações. É preciso verdade no que se celebra. E dá outro exemplo: o que fazer com o adversário (Mt 5, 25)? O adversário é aquele que caminha connosco, vive connosco, é o nosso próximo. O adversário é uma figura que podemos tornar-nos nós para os nossos irmãos e que pode tornar-se o irmão para nós. No fundo, Jesus diz: “Tenta reconstruir um bom entendimento com ele antes que seja tarde demais, antes que a relação seja comprometida para sempre e nunca seja recuperada.” Também aqui há uma prioridade, uma urgência: “rapidamente”, sem esperar, sem demora, “chegar a um acordo com o seu adversário”, diz Jesus (Mt 5, 25). Até mesmo os sentimentos de ódio ou desconforto para com o adversário devem ser colocados em parênteses, devem ser suspendidos para tomar a iniciativa e encontrar o irmão em vez do adversário.
A palavra da Torá falada por Jesus (“mas eu digo-vos”) torna-se magistério para o quotidiano falar do homem. Termina com a frase: “Que o teu falar seja ‘sim, sim’, ‘não, não’; o mais vem do Mal” (Mt 5, 37).
Caríssimos senhores cónegos, somos chamados nesta catedral cheia de história a ser anunciadores dessa lei maior, a lei do amor que resume todo o Evangelho de Jesus Cristo. A partir dele fazemos doutrina através da pregação que queremos seja sempre Boa Notícia e traga Alegria ao coração de cada crente que connosco aqui celebra e querem partir para levar o Evangelho ao coração do mundo. Oxalá a nossa palavra possa ser acompanhada pela força da expressão repetida por Jesus “eu porém digo-vos!” Num mundo mudado, também nas formas de acolher a nossa pregação, de olhar a nossa missão de ensinar e santificar, precisamos de a tornar relevante com a marca visível que a palavra deixa na nossa vida, torná-la credível pela nossa coerência e convicção.
É bom manter as tradições, mais difícil atualizá-las e levá-las a responder às necessidades de crentes e não crentes de hoje. Muitas estão pensadas para um mundo todo ele crente, mas que já não existe. Por isso, «a causa missionária deve ser (…) a primeira de todas as causas», também a nossa. Que sucederia se tomássemos realmente a sério estas palavras? Simplesmente reconheceríamos que a ação missionária é o paradigma de toda a obra da Igreja. Nesta linha, lembra o Papa na EG: «não podemos ficar tranquilos, em espera passiva, nos nossos templos», sendo necessário passar «de uma pastoral de mera conservação a uma pastoral decididamente missionária».
Pede-se-nos abertura sincera e acolhimento aos não praticantes, um diálogo cultural capaz de levar o Evangelho às estruturas da sociedade e ajudá-las a ser mais justas. No entanto, a verdadeira abertura implica conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma identidade clara e feliz, mas «disponível para compreender as do outro» e «sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos» (EG 251). Não nos serve uma abertura diplomática que diga sim a tudo para evitar problemas, porque seria um modo de enganar o outro e negar-lhe o bem que se recebeu como um dom para partilhar com generosidade. Longe de se contraporem, a evangelização e o diálogo apoiam-se e alimentam-se reciprocamente. Para o cabido significa, porventura, juntar a missão da cultura à do culto! Esta Igreja Mãe que é a catedral deve ser modelo deste acolhimento, deve torná-lo visível, pela afabilidade e ternura de uma Mãe!
O Concílio Vaticano II falou de conversão eclesial como a abertura a uma reforma permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo: «Toda a renovação da Igreja consiste essencialmente numa maior fidelidade à própria vocação. (…) Como instituição humana e terrena, a Igreja necessita perpetuamente desta reforma». Há estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um dinamismo evangelizador; de igual modo, as boas estruturas servem quando há uma vida que as anima, sustenta e avalia. Sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem «fidelidade da Igreja à própria vocação», toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo.
Volto à palavra de Deus: tudo nasce no coração! Se olharmos à nossa volta, bastaria viver o mandamento novo do amor e teríamos um mundo de paz e harmonia! Com a sua vida e as suas escolhas, Jesus atesta que a plenitude da Palavra se encontra no amor. Por vezes somos tão complicados com tantas regras, leis, prescrições! Mas tudo pode ser simples e autêntico. O amor não esquece a lei, mas supera-a e leva-nos mais alto, mais longe e sempre ao largo.
+ Armando, Bispo de Angra