Vila Franca do Campo.

«Cristo é a imagem de Deus invisível, o primogénito de toda a criatura». Com estas palavras S. Paulo convida a Comunidade de Colossos a aprofundar de tal modo o mistério de Cristo que O reconheça como verdadeiro Deus mas também como verdadeiro homem.

Em situação história diferente e com novos contornos culturais, necessitamos também nós, hoje, de aprofundar o mistério de Cristo de modo a reconhecer n’Ele a plena divindade e a perfeita humanidade.

O contexto que nos é oferecido para fazermos esta imprescindível experiência é o caminho que conduz ao Mistério Pascal, entrega, morte e ressurreição. É neste itinerário, que forçosamente teremos de empreender, que reconheceremos como o nosso próprio mistério se ilumina pelo mistério do Verbo de Deus.

É neste caminho Pascal que as mais profundas interrogações do ser humano, as suas aspirações e as suas vicissitudes se abrem à luz nova que só Cristo poderá oferecer através do Espirito Santo.

Por isso, seja a exclamação de Pilatos «Eis o homem» sejam as diversas insinuações que saem da boca dos que rodeavam a cruz de Jesus de Nazaré orientam o ser humano para a descoberta de si mesmo, numa profundidade que só Deus lhe pode dar.

Jesus Cristo não veio para se salvar a si mesmo e a sua realeza não é deste mundo. Todo o Seu ser é dádiva total, entrega plena, amor sem limites. A Sua realeza não se exprime pelo domínio, pela força ou pela vingança, muito pelo contrário, Ele exprime a sua realeza no serviço, no despojamento e na humilhação.

Na verdade, S. Paulo afirma que «aprouve a Deus que n’Ele residisse toda a plenitude» mas acrescenta «por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas, estabelecendo a paz, pelo sangue da sua cruz, com todas as criaturas na terra e nos céus».

A partir do itinerário que conduz à Pascoa somos questionados pela verdadeira identidade do homem, somos interpelados sobre uma nova forma de exercer o poder e somos convidados a encetar o caminho da reconciliação e da paz.

Um dos problemas cruciais do nosso tempo tem a ver com a verdadeira identidade da pessoa humana. Ao reconhecer-se como ser absoluto, o homem despreza os seus semelhantes; ao não aceitar os seus limites, vive orgulhosamente voltado para si mesmo, num egoísmo devorador; dominado pelo materialismo, sente-se ofuscado na sua mente e no seu coração, nega para si mesmo a esperança no futuro e destrói-se num presente manipulador.

Urge recuperar o ser humano em todas suas dimensões. O Concilio Vaticano II consciente desta urgência, lança a pergunta: «Mas, que é o homem?» E sublinha que «ele próprio já formulou, e continua a formular, acerca de si mesmo, inúmeras opiniões, diferentes entre si e até contraditórias». Acrescenta, então, «segundo estas, muitas vezes se exalta até se constituir norma absoluta, outras se abate até ao desespero». Reconhece, deste modo que «daí as suas dúvidas e angústias».

Contudo, «a Igreja sente profundamente estas dificuldades e, instruída pela revelação de Deus, pode dar-lhes uma resposta que defina a verdadeira condição do homem, explique as suas fraquezas, ao mesmo tempo que permita conhecer com exactidão a sua dignidade e vocação» (GS, 12).

A resposta não poderá ser outra do que a abertura a Deus. Por isso, escutámos na segunda leitura, referindo-se a Cristo, «n’Ele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, visíveis e invisíveis, Tronos e Dominações, Principados e Potestades: por Ele e para Ele tudo foi criado».

A negação de Deus leva à negação do homem. Ao contrário do que o pensamento humano tem vindo a impor à sociedade, segundo o qual, era necessário abandonar Deus para reafirmar a cidadania do homem, na verdade quando o homem se afasta de Deus é ele mesmo que se sente abandonado e sem a compreensão mais profunda. Assim, «muitas vezes, recusando reconhecer Deus como seu princípio, perturbou também a devida orientação para o fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua ordenação quer para si mesmo, quer para os demais homens e para toda a criação» (GS, 13).

A resposta a esta divisão que experimente o homem só pode vir da manifestação de Deus porque «a sublime vocação e a profunda miséria que os homens em si mesmos experimentam, encontram a sua explicação última à luz desta revelação» (GS, 13).

A par com a pergunta sobre a pessoa humana, o caminho pascal desafia a exercer o poder como serviço. É eloquente a pergunta feita o Crucificado: «Tu és Rei?». Jesus não negou, pelo contrário afirmou a Sua realeza mas demonstrou com a Sua vida que tendo todo o poder no Céu e na Terra apresenta-se como Aquele que serve. Mais ainda, identificou-se com todos os excluídos da sociedade e realçou a prioridade dada no Reino dos Céus aos mais abandonados e marginalizados.

O Papa Francisco, no seu discurso perante a Assembleia das Nações Unidas, em Setembro do ano passado, advertia para o perigo de uma acção publica dominada pela burocracia que despreza as pessoas concretas e os seus reais problemas.

Já o Papa Bento XVI, voltado para o mundo em crise, afirma que «os aspectos da crise e das suas soluções bem como de um possível novo desenvolvimento futuro estão cada vez mais interdependentes, implicam-se reciprocamente, requerem novos esforços de enquadramento global e uma nova síntese humanista» (CV, 21). E, acrescenta que «a complexidade e gravidade da situação económica actual preocupa-nos, com toda a justiça, mas devemos assumir com realismo, confiança e esperança as novas responsabilidades a que nos chama o cenário de um mundo que tem necessidade duma renovação cultural profunda e da redescoberta de valores fundamentais para construir sobre eles um futuro melhor» (CV, 21).

Mais ainda, «a crise obriga-nos a projectar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em experiências positivas e rejeitar as negativas». Assim, continua o Papa, «a crise torna-se ocasião de discernimento e elaboração de nova planificação»(CV, 21).

Eis a chave, feita mais de confiança que resignação, com a qual convém enfrentar as dificuldades da hora actual.

Para o Santo Padre, Bento XVI, «as grandes novidades, que o quadro actual do desenvolvimento dos povos apresenta, exigem em muitos casos novas soluções (CV, 32).  E, «estas hão-de ser procuradas conjuntamente no respeito das leis próprias de cada realidade e à luz duma visão integral do homem, que espelhe os vários aspectos da pessoa humana, contemplada com o olhar purificado pela caridade» (CV, 32).

Deste modo, «descobrir-se-ão então singulares convergências e concretas possibilidades de solução, sem renunciar a qualquer componente fundamental da vida humana» (CV, 32).

Quanto aos poderes públicos, no exercício ligitimo das suas funções, terão de se questionar sobre os fundamentos e sobre os objectivos que norteiam as suas decisões. Servir a pessoa humana e a sociedade, dar prioridade aos mais desprotegidos e excluídos, mobilizar para que todos os cidadãos sejam protagonistas da causa pública, respeitar os dinamismos da identidade cultural de cada povo, dar prioridade á família como verdadeira comunidade originária da sociedade; colocar a economia ao serviço da pessoa e estabelecer o diálogo entre as diversas ideologias para favorecer a causa comum. Eis algumas das prioridades do nosso tempo para a construção de uma sociedade mais justa.

Por último, perante um mundo de divisões e de conflitos, urge estabelecer uma sociedade onde a reconciliação e a paz imperem.

Olhamos à nossa volta e vemos um mundo que protegendo os interesses de alguns grupos coloca nas sendas do desespero tantos refugiados vagueando pelos trilhos de uma Europa sem rumo e sem horizonte. Mas também à nossa beira, nas famílias desfeitas, nas vizinhanças confrontadas, nos grupos rivalizados, a reconciliação é necessária.

Onde exista um foco de pobreza algo vai mal na nossa sociedade. O mundo está em guerra, diz-nos o Papa Francisco. Cuidemos do nosso mundo através da reconciliação, a começar pelos que nos estão mais próximos.

Fixemos o nosso olhar em Jesus Cristo, aqui evocado o Senhor da Pedra e façamos junto d’Ele a oração com as palavras de S. Paulo: «Damos graças a Deus Pai, que nos fez dignos de tomar parte na herança dos santos, na luz divina. Ele nos libertou do poder das trevas e nos transferiu para o reino do seu Filho muito amado, no qual temos a redenção, o perdão dos pecados».

Imploremos de Nossa Senhora, Mãe de Jesus Cristo, Mãe e Rainha dos Açores, que abençoe as famílias, os jovens, os doentes, as crianças e os emigrantes, que assista os nossos autarcas para que desempenhem as suas tarefas como serviço na defesa do bem comum e da dignidade humana e nos conduza pelos caminhos que levam à evangelização do mundo de hoje.

Amen.

+João Lavrador, Bispo de Angra e ilhas dos Açores

28 Agosto 2016