Sé de Angra

«Manifestou-se a graça de Deus que traz a salvação para todos os homens». Estas palavras com as quais o Apóstolo Paulo comunica ao seu companheiro de missão Tito o que de mais profundo reconhece do projecto de Deus para com a humanidade, são as mesmas que nos despertam para o sentido profundo do que acontece nesta noite.

Começa S. Paulo por nos alertar para a manifestação da graça de Deus. Na verdade a revelação é algo de continuo e a necessitar de cada um pessoalmente e de cada comunidade cristã o esforço por despojar-se de tudo o que impede que a mesma se realize e que actue na vida de todos os povos.

Mais ainda, é uma revelação ou manifestação que traz a salvação. Eis a grande questão que se coloca ao homem e mulher de hoje. Será que a salvação requerida pelas precárias condições a que todo o ser humano se encontra sujeito, dito de outro modo, será que a finitude e a limitação que se manifestam de diversos modos e que levam a questionar o sentido da vida pessoal e social, exigem a manifestação e a comunhão com Deus?

S. Paulo tem a consciência de que esta salvação é para todos os homens, facto que nos leva a abrirmos as fronteiras da nossa vida e a preocuparmo-nos com todos os que estão necessitados da libertação.

Já o profeta Isaías, tal como escutámos na primeira leitura, dirigindo-se ao povo de Deus, que no dizer das suas palavras, anda nas trevas, reconhece que num «Menino que nos foi dado, num filho que nos foi concedido», descobre uma luz que começou a brilhar.

Reconhecemos na voz do profeta Isaías o clamor de toda a humanidade que apesar de todos os avanços da ciência e dos progressos da técnica, mesmo com a presunção de uma racionalidade que deseja descobrir os mistérios profundos de toda a realidade, continua envolta em escuridão. Trevas na inteligência, nos afectos, na sensibilidade, na ternura e na compaixão e sobretudo na fraternidade.

A humanidade continua envolta em escuridão que não deixa ver o outro como irmão, não possibilita acolher quem está excluído, não aceita o diferente, não se abre à luz que ilumina o sentido da vida pessoal e comunitária.

A luz que irrompe nas trevas densas da nossa humanidade não é uma ideologia, nem um código de leis, não se limita a projectos arquitectados pela mente humana, nem a liderança de grupos que se sentem iluminados para comandarem os seus semelhantes, mas sim na Pessoa de um Menino que nos foi dado e num Filho que nos foi concedido.

Ficaria incompleta este anúncio profético se não nos deixássemos despertar nesta noite pela voz celeste que nos identifica concretamente quem é este Menino e quem é este Filho, exclamando: «Não temais porque venho trazer-vos uma boa nova, que será grande alegria para todo o povo, nasceu-vos hoje na cidade de David um Salvador que é o Messias Senhor».

Na verdade, o Evangelista para nos oferecer um acontecimento histórico seguro, antecipa esta proclamação celeste dos pormenores geográficos, históricos e sociais. Só deste modo reconhecemos que a salvação que toda a pessoa procura e que lhe é concedida pelo Filho de Deus é um facto continuamente encarnado na história, na cultura e nas condições humanas.

Por isso, este mesmo acontecimento que é apresentado pela voz celeste como no «hoje« da história não só nos alcança como nos compromete. É, sem duvida, no espaço geográfico em que se desenvolve a vida pessoal e comunitária, é no contexto cultural concreto em que vivemos, onde predomina o descarte da pessoa, o cepticismo em relação a Deus, o relativismo ético e o desprezo pelo ambiente; é nas situações reais da nossa sociedade tantas vezes marcadas pela indiferença, pela pobreza, marginalidade, exclusão, individualismo e egocentrismo, que somos chamados a descobrir e a viver a encarnação de Jesus de Nazaré que continua a actuar em nós e através de nós na libertação do Seu Povo.

Perante o desafio do hoje da salvação que nos é trazida pelo nascimento de Jesus de Nazaré, não podemos deixar de nos envolver nas situações de pandemia que estamos a viver e sobretudo das suas consequências.

Esta pandemia apresentou-se verdadeiramente como trevas e escuridão, lançou por terra todas as certezas técnicas e científicas, desmoronou a sociedade e desarticulou as comunidades, gerou medo e mesmo pânico, criou novos focos de pobreza e de exclusão, travou a expressão de afectos e lançou sobre a humanidade uma inquietante pergunta sobre o sentido presente e futuro.

Estamos a viver o Natal do Senhor, chamados a não ter medo e a ser-nos anunciado que com o Seu nascimento é-nos comunicada uma Boa Nova que o é para todo o Povo.

Na verdade, há uma nova compreensão de toda a realidade na qual estamos envolvidos se nos deixarmos cativar pelo amor, se reconhecermos que Jesus de Nazaré pela encarnação ficou a fazer história connosco e nenhum dos passos da nossa vida lhe é indiferente, muito pelo contrário, as alegrias e as dores dos Seus irmãos são as Suas alegria e as Suas dores.

Mas se nos é projectada uma luz nova sobre a realidade actual, também é certo que nos é lançado o desafio à missão concreta junto dos irmãos.

Descobrir o Messias nascido requer sintonizar com o modo como Ele se apresenta. Por isso é muito importante deixarmo-nos converter pela voz do Anjo quando nos diz «achareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura».

Estamos perante um desafio a clarificar a nossa fé cristã mas também a sintonizar com aqueles com quem Jesus de Nazaré se quis identificar, os pobres e os excluídos, as crianças e débeis.

«Não tenhais medo!», eis as palavras com as quais o Anjo se dirigiu aos pastores aos quais quis comunicar em primeira mão a Boa Nova do nascimento de Jesus de Nazaré.

Na situação actual em que vivemos urge reconhecer que esta é a mesma interpelação a deixarmos o medo. Não queremos uma religião do medo, não desejamos uma cultura do medo, não aceitamos uma sociedade cujas relações são pautadas pelo medo uns dos outros; porque O Messias que hoje nasce para nós é o Príncipe do amor e da Paz; como Salvador e Redentor, vem convidar-nos a edificarmos uma nova criação e a estabelecer entre nós relações de verdadeira fraternidade.

Somos uma única família humana e como tal partilhamos dos dons da criação e da salvação.

Em plena caminhada sinodal, sob o lema «a beleza de caminharmos junto com Cristo», com a qual nos dispomos a renovar as nossas comunidades cristãs pela participação activa de todos os baptizados, a Encarnação de Jesus Cristo na história dos homens e mulheres de cada tempo é, sem dúvida, de uma exigência profunda para a missão evangelizadora da nossa diocese.

Termino desejando a todos, nomeadamente aos mais excluídos e pobres, às vítimas desta pandemia e aos que estão na diáspora, um santo e feliz natal.

 

Imploro de Nossa Senhora Mãe de Jesus, Mãe e Rainha dos Açores, que se alegra com o Seu nascimento, que abençoe as famílias, os jovens e os idosos, as crianças e todos os que buscam o sentido para a sua existência, e nos acompanhe nos caminhos que levam à evangelização do mundo de hoje.

 

Ámen

 

+João Lavrador, Bispo de Angra e Ilhas dos Açores