Sé Catedral. Angra.

Antes da Sua entrega em redenção pela humanidade, Jesus de Nazaré reúne-se com os seus Apóstolos para celebrarem conjuntamente o memorial da Ceia Pascal segundo a tradição dos Judeus. No decorrer da Ceia, segundo o relato dos Evangelhos, Jesus transforma aquela que seria tão só uma refeição comemorativa da libertação da opressão do Egipto numa nova Páscoa que perpetuará a oferta livre e amorosa de Jesus Cristo em redenção por toda a humanidade. Deste modo se dá inicio à Páscoa de Jesus Cristo, centro de toda a história da salvação que incorpora todos os gestos anteriores que a prepararam, manifesta a novidade plena de que se reveste e reclama um compromisso de entrega toral de todo o discípulo que é chamado a identificar-se com o seu Mestre.

Neste sentido, começa a Palavra de Deus por nos convidar a participar das exigências da primeira páscoa quando afirma que «este mês será para vós o princípio dos meses; fareis dele o primeiro mês do ano». Com esta expressão «principio» e o «primeiro» está a colocar os fundamentos sobre os quais se deve organizar a nossa experiência de vida de comunhão com Deus.

De olhar posto no cordeiro imolado, diz o Senhor: «Quando o comerdes, tereis os rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão. Comereis a toda a pressa: é a Páscoa do Senhor».

Somos um povo de peregrinos, despojados e prontos para partir. Esta foi a primeira experiência de fé, que nos é narrada no livro do Genesis quando relata o chamamento de Abraão. Esta é a condição permanente do Povo crente que aceita o desafio da parte de Deus a partir sempre e a assumir a condição de peregrino em busca do Reino que lhe está prometido e que vive já na Esperança.

É a páscoa do Senhor da qual nós participamos. Somos um povo que nasce da páscoa, se configura a Jesus Cristo na Páscoa e que assume a condição de povo pascal.

Daí o gesto de Jesus Cristo que, na linguagem de S. João, uma vez à mesa da Ceia Pascal, nos oferece o sentido mais profundo do que é a Sua missão enquanto serviço humilde e desprendido aos seus irmãos.

O episódio é tão desconcertante que revela o sentir dos Apóstolos expresso na advertência de Pedro. É a própria condição divina de Jesus Cristo que está em causa e que Pedro quer defender. Mas a iniciativa divina é outra. Estamos no auge e no culminar de todo o serviço de Deus à humanidade. A entrega do Seu próprio Filho em resgate e libertação é o ápice de toda a revelação de Deus que se manifesta na humildade, no despojamento, no serviço e no amor.

Mas o escândalo de Pedro está também na resistência pessoal em deixar-se conduzir pelo Espirito de Deus que o leva a configurar-se com Jesus pascal. Por isso, Jesus adverte-o de que se não o lavar não pode ter parte com Ele.

Na verdade, a celebração de hoje é tão densa, exigente e interpelante, que não nos resta outra atitude que não seja abandonarmo-nos ao serviço prévio de Cristo que nos lava de todos os egoísmos, egocentrismos, autoreferências, critérios mundanos e opiniões pessoais, para nos entregarmos na verdadeira liberdade, no amor, no serviço e na renovação da mente e do coração que a participação na páscoa do Senhor nos oferece.

É desta fidelidade que nos fala S. Paulo ao recordar as palavras, os gestos e as exigências da Ceia pascal. Quando refere que «Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti» está a colocar-se no lugar de testemunha autêntica dos factos e do seu conteúdo. Não estamos tão só na fidelidade às palavras de Cristo, mas sobretudo ao que Ele quis transmitir com este gesto.

Por isso, após narrar as palavras da consagração do Pão e do Vinho, acrescenta «na verdade, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha».

É esta verdade da presença real de Cristo na Eucaristia que somos chamados a contemplar hoje. É deveras a Cristo entregue como alimento que somos convidados a reconhecer. É a páscoa de Jesus Cristo que continuamente celebramos todas as vezes que o fazemos em Sua memória.

Neste contexto, há uma exigência que nos vem do Evangelho e das palavras de Jesus Cristo que após dar o sinal de serviço junto dos seus Apóstolos, lhes afirma: «se Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também».

Daqui se depreende que a comunidade que se reúne para celebrar a Eucaristia, é uma comunidade de serviço ao seu irmão. Todos aqueles que participam na Ceia Pascal do Senhor renovada em cada domingo na Eucaristia comunitária têm a obrigação de olhar para o mundo, para a cultura e para a sociedade e descobrir os rostos desfigurados pela exclusão, pela pobreza, pela fome, pela miséria e pela injustiça e dobrar-se perante as pessoas vitimas de qualquer condição de indignidade para as servir de modo a elevá-la até à condição digna do ser humano.

Se hoje urge proclamar o Evangelho da Eucaristia e do domingo, também é verdade que temos a necessidade premente de promover nas comunidades cristãs a consciência de autênticas comunidades missionárias e ministeriais, atentas aos mais pobres e excluídos da dignidade humana.

Hoje, exige-se silêncio capaz de nos levar à contemplação, mas também que nos proporcione um exame de consciência profundo sobre o alcance que o serviço toma na celebração da Eucaristia.

Com S. João Paulo II nós afirmamos «a Igreja vive da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da Igreja» (EE, 1). Mais ainda «unindo-se a Cristo, o povo da nova aliança não se fecha em si mesmo; pelo contrário, torna-se  “sacramento” para a humanidade, sinal e instrumento da salvação realizada por Cristo, luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5, 13-16) para a redenção de todos» (EE, 22).

De facto «a missão da Igreja está em continuidade com a de Cristo: “Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós” (Jo 20, 21). Por isso, a Igreja tira a força espiritual de que necessita para levar a cabo a sua missão da perpetuação do sacrifício da cruz na Eucaristia e da comunhão do corpo e sangue de Cristo» (Ib. 22). Aliás,  «deste modo, a Eucaristia apresenta-se como fonte e simultaneamente vértice de toda a evangelização, porque o seu fim é a comunhão dos homens com Cristo e, n’Ele, com o Pai e com o Espírito Santo» (Ib. 22).

Importa recordar o lema deste ano pastoral que refere «comunidade evangelizada, em comunhão missionária». Deste modo, a nossa comunidade diocesana tem a obrigação de descobrir os dinamismos missionários e evangelizadores que se nutrem da Eucaristia.

Imploro de Nossa Senhora, Mãe e Rainha dos Açores, Mãe Eucaristica que nos abençoe e nos conduza pelos caminhos que nos ajudem a descobrir a riqueza da Eucaristia e dos dinamismos que dela provêm.

 

Amen.

 

+João Lavrador, Bispo de Angra e Ilhas dos Açores