Igreja Matriz. Horta.

«Nós falamos de sabedoria entre os mais adiantados na perfeição, mas de uma sabedoria que não é deste mundo, nem daqueles que têm o domínio deste mundo (…). Ao contrário, nós falamos de uma sabedoria de Deus». Esta exortação com a qual o Apóstolo Paulo quer provocar na comunidade de Corinto um autêntico discernimento que provem da verdadeira sabedoria revelada e vivida em comunhão com Deus e a sabedoria que faz parte dos que usam a inteligência e a razão humana para os seus interesses pessoais, é dirigida igualmente a nós hoje como comunidade cristã e reveste-se de uma actualidade invulgar.

Na verdade, quem não reconhece que na nossa cultura domina um racionalismo legalista e   que a sociedade é orientada por interesses económicos, ideológicos, de domínio, focados no prazer, no ter e no poder.

É precisamente perante esta realidade que permanece na história, embora com nuances distintas em cada época, que somos chamados a uma sabedoria que para responder à dignidade da pessoa e do bem comum tem de ser revelada por Deus e apreendida pela pessoa humana na comunhão íntima com Jesus Cristo.

Para nos ajudar neste discernimento, já a primeira leitura, do Livro do Ben Sirá, nos convida a experimentar e guardar os mandamentos porque a fidelidade depende da vontade de cada um. Assim, coloca a pessoa perante o exercício da sua liberdade de escolha dizendo que «em frente dos homens, estão a vida e a morte, será dado a cada um o que ele preferir».

De facto, a decisão de cada um que tem sempre implicação na vida e no futuro da sociedade não é um acto inócuo, muito pelo contrário, todos os actos e decisões, critérios e valores vão favorecer a promoção da comunidade humana ou vão intervir negativamente e ofender a verdadeira evolução da humanidade.

Mas a Palavra de Deus convida-nos a ir mais além, a progredir na verdadeira sabedoria revelada por Deus, agora pela própria iniciativa de Jesus de Nazaré. Tal como nos é relatado no Evangelho, Jesus alerta-nos para o aperfeiçoamento da lei e para o seu pleno cumprimento. Diz Ele que não veio revogá-la mas abri-la para o seu verdadeiro sentido dado por Deus.

Convida-nos, então, a percorrer as diversas normas prescritas na Promessa e a interiorizá-las, a praticá-las em atitude de comunhão e amor a Deus e aos irmãos; a vivê-las a partir de dentro de si mesmo, moldando o coração através da graça divina e pelo amor informar e purificar todos os critérios, pensamentos e atitudes.

Através da experiência do amor de Deus, as criaturas são chamadas a viver na verdade e na coerência, a entrar dentro de si e a descobrir nos pormenores do seu pensar, sentir e agir a correlação com a vida e a revelação de Deus.

Para os discípulos, isto é, para os baptizados, Jesus de Nazaré interpela fortemente ao dizer «se a vossa justiça não exceder a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino de Deus».

Reconhecemos que a Palavra proclama nesta celebração nos desafia profundamente na nossa condição de cristãos, na verdade e na coerência da nossa experiência de discípulos de Jesus Cristo, mas é igualmente uma forte advertência à nossa presença no meio do mundo de hoje e do discernimento necessário para uma actuação evangélica na sociedade e na cultura actuais.

É neste contexto que quero sublinhar em atitude de acção de graças, reconhecimento e gratidão a celebração dos 500 anos da Santa Casa da Misericórdia da Horta, cuja efeméride iniciamos hoje.

Perante uma obra como a Santa Casa e com uma longa e profícua história de serviço ao próximo, oferecendo a dignidade perdida e promovendo a pessoa no contexto de um humanismo integral, o nosso ser volta-se para Deus, autor de todo o bem, para Lhe dar graças pelas maravilhas aqui operadas; mas é também em atitude de reconhecimento a todos aqueles que entregaram a esta casa o melhor das suas capacidades e do seu esforço para que em cada época da história se descobrisse por onde passava a pobreza e a exclusão para responder eficazmente aos seus desafios; por último em preito de gratidão a tantos, sacerdotes, religiosas e leigos, famílias e utentes que souberam permanecer firmes nos ideais que norteiam esta instituição e apesar de todas as contrariedades e provocações da história souberam enraizar-se na fé vivida e convivida, feita expressão de amor e de generosidade, criatividade e fermento de uma nova humanidade.

Foram muitos os desafios que provocaram esta instituição, ao longo destes anos, mas é igualmente verdade que hoje, se lançam sobre ela não menos interpelações.

Desde logo, a permanecer fiel à sua identidade. Nasce do coração crente de um povo, é acarinhada pela Igreja que a protege e ampara e soube defender-se de invectivas de se desviar do verdadeiro humanismo cristão; soube, com verdadeira sabedoria e discernimento, descobrir qual o rosto da pobreza e da exclusão que caracterizou cada época para em atitude de entrega total, oferecer à pessoa necessitada a dignidade que para ser verdadeiramente humana tem de ser inspirada por Deus; possuidora de um verdadeiro humanismo, soube oferecer à sociedade e à cultura, tanta vezes com uma visão do homem tão parcelar e redutora, o autêntico valor da pessoa humana promovendo todas as suas dimensões e aptidões.

No tempo em que vivemos, no qual o relativismo, o materialismo e o indiferentismo parecem ter tomado conta da nossa sociedade, projectando sobre a pessoa humana uma visão deformada e alienante, esta instituição, através da generosidade e sabedoria das pessoas que a orientam, tem por dever oferecer, nos gestos e nas palavras, a verdade acerca do homem e enaltecer o amor como o centro de toda a compreensão da pessoa e da sociedade.

Numa cultura que parece ver o ser humano como objecto descartável, cuja vida é desvalorizada e manipulada, enxertada entre duas fronteiras, do nascimento e da morte, e transformando a liberdade em caprichoso argumento para viciar o verdadeiro sentido e valor transcendente da vida humana, esta instituição é chamada a intervir no mundo dos homens para lhes oferecer uma visão nova sobre a pessoa e a sociedade que para ser nova só poderá vir da sabedoria divina revelada em Jesus de Nazaré.

Certamente que é uma tarefa permanente descobrir as novas pobreza e exclusões, mas é igualmente necessário denunciar os atropelos ao ser humano e anunciar profeticamente o homem novo que recolhe a sua imagem em Jesus Cristo.

Termino implorando de Nossa Senhora das Misericórdias que abençoe todos os que fazem parte desta instituição da Santa Casa da Misericórdia da Horta, Senhora Provedora, Mesa Administrativa, Capelão, irmãs religiosas, irmãos, trabalhadores e utentes e ofereça a luz do Seu Filho para trilhar os caminhos do seu futuro.

 

Ámen

 

+João Lavrador, Bispo de Angra e Ilhas dos Açores