Vila Franca do Campo.

Tendo ontem sido comemorado o V centenário do terramoto que destruiu Vila Franca do Campo, com todas as consequências desse acontecimento que chegam até aos nossos dias, estamos hoje a viver intensamente uma delas, através dia do romeiro desta Vila e de toda a ilha de São Miguel.

Ao que consta, os primeiros romeiros de quinhentos saíram em grupo ou rancho oito dias depois da catástrofe, de junto da antiga matriz numa curta procissão, peregrinação ou romaria sobre ruínas, com destino à ermida de Nª. Sª. do Rosário, a rezar por misericórdia, pelos mortos, pelos feridos e a pedir força para reerguer a sua vila e sobretudo as suas vidas e a das suas famílias.

Pese embora a evolução de meio milénio, a romaria simboliza a experiência do homo viator que aparece como um viandante com sede de novos horizontes e fome de paz e de justiça, investigador da verdade, desejoso de amor, aberto ao absoluto e ao infinito.

Simboliza a experiência fundamental de Israel, que está em marcha rumo à terra prometida da salvação e da liberdade plena; a experiência de Cristo, que da terra de Jerusalém sobe até ao céu, abrindo o percurso em direção do Pai; a experiência da Igreja, que procede na história rumo à Jerusalém celeste; a experiência de toda a humanidade, que visa alcançar a esperança e a plenitude.

Há duas cidades que adquirem um valor de sinal para um romeiro: Roma, que lhe deu o nome, símbolo da missão universal da Igreja, e Jerusalém, lugar sagrado e venerado por todos aqueles que seguem a via das religiões abraâmicas. Ela indica-nos o ponto final da peregrinação da humanidade inteira, “a cidade santa que desce do céu”. Para ela avançamos como «um povo que caminha, e juntos caminhando, podemos alcançar uma cidade onde há justiça, sem penas nem tristezas, cidade onde há paz».

O romeiro como experimenta na sua carne a dureza do caminho, e tem uma «espiritualidade do caminho», deve tornar-se o bom Samaritano na estrada, pronto a socorrer e a acompanhar o irmão à hospedaria da caridade fraterna e da convivência solidária, sobretudo daqueles que são obrigados a caminhar para fugir da guerra, das calamidades e da fome, em romarias forçadas e não programadas.

Cada romeiro deve confessar, como um autor anónimo das Narrações de um peregrino russo:  “Por graça de Deus sou homem e cristão, pelas minhas ações, grande pecador, por condição, um peregrino desabrigado humilíssimo, que vai errando de lugar em lugar. Os meus haveres são um saco às costas, com um pouco de pão seco e uma Bíblia Sagrada que levo debaixo da camisa. Outra coisa não tenho»:

A Palavra de Deus e a Eucaristia acompanham-nos na romaria rumo à Jerusalém celeste, da qual as igrejas e ermidas são sinal vivo e visível. Quando a alcançarmos, abrir-se-ão as portas do Reino, abandonaremos o hábito de viagem e o bastão do peregrino e entraremos na nossa casa definitiva, “para estarmos para sempre com o Senhor”. Lá Ele estará no meio de nós “como Aquele que serve” e ceará connosco e nós com Ele». Ele é que irá ao terreiro ou à praça para arrumar o ranho e nos abrigar em sua casa.

Sabemos que os nossos antepassados de 1522 já conheciam o texto evangélico que acabamos de ouvir. Passemos agora para o presente da nossa conversão. Os destinatários da parábola são «alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros». Estamos diante de situações diferenciadas de dois personagens com quem nos podemos identificar. Um fariseu conotado com a rigorosa observação da Lei e um publicano conotado com os pecadores. Vejamos como se carateriza cada um deles.

O fariseu, apesar de se dirigir a Deus, fica de pé, quase não precisa d’Ele; compara-se aos outros em quem apenas vê apenas defeitos, ligados ao incumprimento da Lei. Agradece por não ser assim, despreza quem não é como ele, apresenta as suas boas ações numa espécie de currículo de boas maneiras. Aparentemente faz uma prece de ação de graças, mas na realidade é uma manifestação dos seus próprios méritos. Reza a Deus, mas na verdade olha e ora por si mesmo.  Faz de conta que reza, mas só consegue pavonear-se diante de um espelho. É perfeito e irrepreensível. A suas ações são comensuráveis: jejua duas vezes por semana e paga o dízimo de tudo o que possui. Mais do que rezar, deleita-se com a observância dos preceitos, agradece não aquilo que Deus fez por ele, mas antes aquilo que ele fez por Deus.

O fariseu faz uma oração que nada pede a Deus, deixando a entender que a história pode caminhar sem a intervenção divina, pois a sua boa conduta basta para que ele se salve. Sente-se justo, descuida o mandamento mais importante: o amor a Deus e ao próximo. Ele não se dá conta de ter perdido o caminho do seu coração.

Isto mostra que é possível estarmos próximos, rezarmos lado a lado, e estarmos separados pela competição, pelo mérito, pela comparação, pelo desprezo ou pela indiferença. A autenticidade da oração, da oferenda feita ao Senhor no culto, passa através da boa qualidade das relações com os irmãos que formam o Corpo de Cristo.

Por outro lado, o publicano não tem um rol de boas ações para apresentar a Deus, mas apenas a sua condição de pecador que lhe causa dor e arrependimento como mostra o gesto de bater no peito e ficar à distância. A humildade aparece naturalmente, sem qualquer orgulho nos seus feitos; não tem coragem sequer para levantar os olhos. O facto de pedir mostra que tem consciência de não ser autossuficiente e de precisar da ação e da justiça de Deus. Apresenta-se de mãos vazias, sem dar contas do que faz, com o coração despojado e reconhecendo-se pecador.

Posta esta caraterização, como romeiros e como praticantes, podemos perguntar, em qual dos personagens nos vemos refletidos? Em quê? Porquê? Recordemos as vezes que vivemos e gozamos experiências gratificantes do perdão de Deus, sobretudo no sacramento da reconciliação.  Como experimentamos pessoalmente a sentença «o que se exalta será humilhado e o que se humilha será exaltado»?

Das lições que podemos tirar, aprendemos que não basta perguntar quantas orações fazemos, mas sobretudo como rezamos, e mais ainda como é o nosso coração, pois não é possível rezar com arrogância nem com hipocrisia. Devemos orar, pondo-nos diante de Deus tais como somos, sem roupagens artificiais.

A parábola ensina ainda que a pessoa é justa ou pecadora não pela sua condição social, mas pelo seu modo de se relacionar com Deus e de se comportar com os irmãos. Às vezes cremos, como o publicano, que Deus nos ama por cumprir a Lei. É como se uma mãe ou um pai só amassem o filho com a condição de ele cumprir todos os deveres.

Vivemos hoje arrebatados pelo delírio do ritmo diário, muitas vezes à mercê de sensações, atordoados e confusos. É preciso aprender a encontrar o caminho do nosso coração, sem arritmias, recuperando o valor da intimidade e do silêncio, pois é ali que Deus nos encontra e nos fala. A partir daí podemos encontrar os outros e falar com eles. A romaria é o lugar para arrumar a vida e por a casa inteira em ordem.

A romaria é também a via para entrar na tenda do encontro com Maria, tornando-se «estrela da evangelização para o caminho da Igreja inteira». Aqui, foi sempre assim: o primeiro destino dos romeiros foi a Nª. Sª. do Rosário, a Nª. Sª. do Pranto, que em 2023, na sequência do terramoto e da peste, fará também 500 anos, a Nª. Sª. da Paz, e à Mãe de Deus, em tantas e originais inovações.

Neste dia mundial das missões, o Papa Francisco mandou uma mensagem à Igreja inteira que bem se adequa a cada romeiro: «Queridos irmãos e irmãs, continuo a sonhar com uma Igreja toda missionária e uma nova estação da ação missionária das comunidades cristãs. E repito o desejo de Moisés para o povo de Deus em caminho: «Quem dera que todo o povo do Senhor profetizasse». Sim, oxalá todos nós sejamos na Igreja o que já somos em virtude do Batismo: profetas, testemunhas, missionários do Senhor! Com a força do Espírito Santo e até aos extremos confins da terra. Maria, Rainha das Missões, rogai por nós!».

Hélder, Administrador Diocesano de Angra